Com a cumplicidade de governos, um punhado de corporações age para impor aos países do Sul internet de baixa autonomia e criatividade; vigilância permanente e captura maciça de dados. Duas portas de entrada: universidades e polícia
Publicado 15/03/2021 às 19:43 - Atualizado 15/03/2021 às 19:49
Por Michael Kwet, no Longreads TNI | Tradução: Simone Paz | Ilustração: Zoran Svilar
Em 2020, os bilionários se deram bem feito bandidos. Os ativos pessoais de Jeff Bezos aumentaram de 113 para 184 bilhões de dólares. Elon Musk eclipsou Jeff Bezos por um momento, com um aumento do patrimônio líquido de US$27 bilhões para mais de US$185 bilhões.
Para os burgueses que dão as cartas nas “Big Techs”, a vida é grandiosa.
No entanto, embora o extenso domínio dessas corporações dentro de seus próprios mercados domésticos seja objeto de inúmeras análises críticas, seu alcance global é um fato raramente discutido, especialmente pelos principais intelectuais do império americano.
Na verdade, ao investigarmos sua mecânica e seus números, torna-se aparente que a Big Tech não só é global em escopo, mas possui um caráter fundamentalmente colonial e é dominada pelos Estados Unidos. Este fenômeno é chamado de “colonialismo digital”.
Vivemos em um mundo onde o colonialismo digital corre o risco de tornar-se uma ameaça para o Sul Global tão significativa e de longo alcance quanto o colonialismo clássico foi nos séculos anteriores. Os acentuados aumentos de desigualdade, o crescimento da vigilância estatal-corporativa e as tecnologias policiais e militares sofisticadas são apenas algumas das consequências desta nova ordem mundial. O fenômeno pode parecer novo para alguns, mas ao longo das últimas décadas, ele se enraizou no status quo global. Se não houver um nenhum movimento de contra-poder considerável, a situação ainda vai piorar muito.
O que é o Colonialismo Digital
Colonialismo digital é o uso da tecnologia digital para a dominação política, econômica e social de outra nação ou território.
Sob o colonialismo clássico, os europeus apoderaram-se terras estrangeiras e as colonizaram. Instalaram infraestrutura como fortes militares, portos marítimos e ferrovias. Utilizaram-se de embarcações para a penetração econômica e conquista militar. Construíram maquinaria pesada e exploraram a mão de obra para extrair matérias-primas. Ergueram panópticos para os funcionários da polícia. Organizaram os engenheiros para uma exploração econômica avançada (por exemplo, químicos para extração de minerais). Desviaram o conhecimento indígena para processos de fabricação. Embarcaram matérias-primas de volta para seu país de origem, para produzir bens manufaturados. Minaram os mercados do Sul Global com produtos manufaturados baratos e perpetuaram a dependência de povos e nações do Sul, numa divisão global desigual do trabalho. Além disso, expandiram a dominação diplomática, militar e de mercado, tendo como alvos o lucro e a pilhagem.
Em outras palavras, o colonialismo dependia da propriedade e do controle de territórios e infraestrutura, da extração de trabalho, do conhecimento, das mercadorias e do exercício do poder de Estado.
Esse processo evoluiu ao longo dos séculos, com novas tecnologias acrescentadas à fórmula, à medida que eram desenvolvidas. No final do século XIX, cabos submarinos facilitaram as comunicações telegráficas a serviço do império britânico. Avanços na gravação, arquivamento e organização de informações foram explorados pela inteligência militar dos EUA, usada pela primeira vez na conquista das Filipinas.
Hoje, no Sul Global, as “Veias Abertas” de Eduardo Galeano são as “veias digitais” que cruzam os oceanos, conectando um ecossistema de tecnologia que pertence e é controlado por um punhado de corporações cujas sedes ficam, principalmente, nos Estados Unidos. Alguns das redes de fibra óptica transoceânicos são formados por cabos pertencentes ou alugados por empresas como Google e Facebook para promover a extração e monopolização de dados. O maquinário pesado de hoje são as fazendas de servidores de nuvem, dominados pela Amazon e pela Microsoft, usadas para armazenar, agrupar e processar Big Data, proliferando como bases militares para o império dos EUA. Os engenheiros são exércitos corporativos de programadores de elite, com generosos salários de 250 mil dólares ou mais. Os trabalhadores explorados são as pessoas que extraem os minerais no Congo e na América Latina, os exércitos de mão de obra barata tomando nota de dados de inteligência artificial na China e na África, e os trabalhadores asiáticos que sofrem de transtorno do estresse pós-traumático por limpar o conteúdo perturbador das plataformas de mídia social. As plataformas e centros de espionagem (como a NSA) são os panópticos, e os dados são a matéria-prima processada para serviços baseados em inteligência artificial.
De forma mais ampla, o colonialismo digital é da consolidação de uma divisão desigual de trabalho, onde os poderes dominantes fizeram uso das suas propriedades de infraestrutura digital, conhecimento e controle dos meios de computação para manter o Sul em uma situação de dependência permanente. Essa divisão desigual do trabalho evoluiu. Economicamente, a manufatura caiu na hierarquia de valor, e foi substituída por uma economia de alta tecnologia avançada, em cujo comando as firmas de big tech estão firmemente instaladas.
A arquitetura do Colonialismo Digital
O colonialismo digital está enraizado no domínio das “coisas” que constituem os meios de computação no mundo digital: software, hardware e conectividade de rede.
Isso inclui as plataformas que atuam como gatekeepers (“guardiões de portões”), os dados extraídos por provedores de serviços intermediários e os padrões do setor, bem como o domínio privado da “propriedade intelectual” e da “inteligência digital”. O colonialismo digital tornou-se altamente integrado às ferramentas convencionais do capitalismo e do governo autoritário, incluindo desde a exploração do trabalho, a captura de políticas e o planejamento econômico até os serviços de inteligência, a hegemonia da classe dominante e a propaganda.
Começando pelo software: um processo onde o código era livre e amplamente compartilhado por programadores tornou-se cada vez mais privatizado e sujeito a direitos autorais. Nas décadas de1970 e 80, o Congresso dos Estados Unidos começou a fortalecer os direitos autorais de software. Houve uma contra-tendência a isso na forma de licenças de “Software Livre e de Código Aberto” (FOSS, na sigla em inglês), que concediam aos usuários o direito de usar, estudar, modificar e compartilhar software. Isso trouxe benefícios claros para os países do Sul Global, pois criou um “espaço digital comum”, livre de controle corporativo e da busca por lucros. No entanto, à medida que o movimento do Software Livre se espalhava para o Sul, foi provocando uma reação corporativa. A Microsoft humilhou o Peru quando seu governo tentou abandonar o software. Também tentou impedir que governos africanos usassem o sistema operacional GNU/Linux FOSS em ministérios e escolas do governo.
Junto com a privatização do software, veio a rápida centralização da Internet nas mãos de provedores de serviços intermediários como Facebook e Google. Crucialmente, a mudança em direção aos serviços de nuvem anulou as liberdades que as licenças FOSS tinham concedido aos usuários. porque o software é executado nos computadores das corporações Big Tech. As nuvens corporativas privam as pessoas da capacidade de controlar seus computadores. Os serviços em nuvem fornecem petabytes de informações para empresas, que usam esses dados para treinar seus sistemas de inteligência artificial. A inteligência artificial usa Big Data para “aprender”. São necessárias milhões de imagens para reconhecer a letra “A” em suas diferentes fontes e formas, por exemplo. Quando aplicados a humanos, os detalhes sensíveis da vida pessoal das pessoas tornam-se um recurso incrivelmente valioso que os gigantes da tecnologia tentam extrair incessantemente.
No Sul, a maioria das pessoas está essencialmente presa a smartphones de baixa capacidade, com pouca folga no pacote de dados. Como resultado, muitos milhões de pessoas experimentam plataformas como o Facebook como se fosse “a internet”, enquanto seus dados são consumidos por imperialistas estrangeiros.
A retroalimentação da Big Data agravam a situação: aqueles que têm mais e melhores dados podem criar melhores serviços de inteligência artificial, o que atrai mais usuários, e com isso têm ainda mais dados para melhorar o serviço, e assim por diante. Assim como no colonialismo clássico, os dados foram ingeridos como matéria-prima pelas potências imperialistas, que os processam, produzem os serviços e os devolvem ao público global, o que fortalece ainda mais sua dominação e coloca todos os demais em uma situação subordinada de dependência.
Cecilia Rikap, em seu próximo livro, Capitalism, Power and Innovation: Intellectual Monopoly Capitalism Uncovered [“Capitalismo, Poder e Inovação: Capitalismo de monopólio intelectual revelado”], mostra como os gigantes da tecnologia estadunidenses baseiam seu poder de mercado em seus monopólios intelectuais, comandando uma complexa cadeia de empresas subordinadas, com o fim de extrair dividendos e explorar trabalho. Isso deu a eles a capacidade de acumular o “know-who” e o “know-how” (conhecimento de pessoas e métodos) para planejar e organizar cadeias de valor globais, bem como para privatizar os saberes e expropriar os bens comuns do conhecimento e os resultados da pesquisa pública.
A Apple, por exemplo, extrai dividendos da propriedade intelectual e da marca de seus smartphones e coordena a produção ao longo da cadeia de commodities. Os produtores de nível inferior, como os montadores de telefones nas fábricas da taiwanesa Foxconn, os minerais extraídos no Congo para a fabricação das baterias e os fabricantes de chips que abastecem os processadores, estão todos subordinados às demandas e caprichos da Apple.
Em outras palavras, os gigantes da tecnologia controlam as relações comerciais ao longo de toda a cadeia de produção, lucrando com o conhecimento, capital acumulado e domínio de componentes funcionais essenciais. Isso lhes permite impor preços ou até dispensar corporações relativamente grandes que produzem seus componentes em massa, como subordinados. As universidades são cúmplices. As mais prestigiadas, nos países imperialistas centrais, são atores dominantes no espaço da produção acadêmica, enquanto que universidades mais vulneráveis da periferia ou semiperiferia são mais exploradas, muitas vezes carentes de fundos para pesquisa e desenvolvimento, de conhecimento ou capacidade de patentear descobertas, e desprovidas de recursos para reagir quando seu trabalho é expropriado.
A colonização da Educação
Um exemplo de como a colonização digital opera no setor da educação.
Conforme exponho detalhadamente em minha tese de doutorado sobre tecnologia educacional na África do Sul, a Microsoft, o Google, a Pearson, a IBM e outros gigantes da tecnologia, vêm exercitando seus músculos em sistemas educacionais de todo o Sul Global. Para a Microsoft, isso não é novidade. Como mencionado acima, ela tentou forçar os governos africanos a substituírem o software livre pelo Microsoft Windows, inclusive nas escolas.
Na África do Sul, a Microsoft possui um exército de treinadores para ensinar os professores a usarem o software da Microsoft no sistema educacional. Também forneceu tablets Windows e software Microsoft para universidades como a Universidade de Venda, numa parceria que anunciou extensivamente. Mais recentemente, fez parceria com o provedor de serviços móveis Vodacom (propriedade majoritária da multinacional britânica Vodafone) para fornecer educação digital a alunos sul-africanos.
Embora a Microsoft seja a principal fornecedora, com contratos em pelo menos cinco dos nove departamentos de educação provinciais da África do Sul, o Google também busca participação no mercado. Em parceria com a startup sul-africana CloudEd, eles procuram fechar o primeiro contrato com um departamento provincial.
A Fundação Michael e Susan Dell também entrou nessa disputa, oferecendo uma plataforma Data Driven District (DDD) para os governos provinciais. O software DDD é projetado para coletar dados que rastreiam e monitoram professores e alunos, incluindo notas, frequência e “questões sociais”. Enquanto as escolas carregam os dados coletados semanalmente, o objetivo final é poder fornecer esse monitoramento do comportamento e desempenho do aluno em tempo real para gerenciamento burocrático e “análise de dados longitudinais” (análise de dados coletados sobre o mesmo grupo de indivíduos no longo prazo).
O governo sul-africano também está expandindo a nuvem do Departamento de Educação Básica (DBE), que, em certo ponto, poderá ser usada para a vigilância tecnocrática invasiva. A Microsoft abordou o DBE com uma proposta de coletar dados “para o ciclo de vida do usuário”, começando na escola e, para aqueles que mantêm contas do Microsoft Office 365, até a idade adulta, para que o governo possa conduzir análises longitudinais sobre coisas como a relação entre educação e emprego.
O colonialismo digital da Big Tech espalha-se rapidamente pelos sistemas educacionais do Sul. Desde o Brasil, Giselle Ferreira e seus co-autores afirmam: “A semelhança entre o que acontece no Brasil e a análise de Kwet (2019) do caso sul-africano (e provavelmente outros países do Sul Global) é impressionante. Em particular, quando as empresas GAFA [Google, Amazon, Facebook, Apple] oferecem generosamente tecnologias a alunos menos favorecidos, os dados são extraídos sem obstáculos e, subsequentemente, tratados de uma maneira que torna as especificidades locais desprovidas de importância.”
As escolas são lugares perfeitos para a expansão do controle da Big Tech sobre os mercados digitais. As pessoas pobres do Sul geralmente dependem de governos ou corporações para usufruir de um dispositivo sem custo, e isso as torna dependentes de terceiros para decidir qual software usarão. Há melhor maneira de conquistar a participação do mercado do que pré-carregar o software de uma Big Tech em dispositivos oferecidos a crianças — que podem ter pouco ou nenhum outro acesso à tecnologia para além desse telefone? Isso tem o benefício adicional de capturar futuros desenvolvedores de software, que podem vir a preferir, digamos, o Google ou a Microsoft (em vez de soluções de tecnologia baseadas em software livre) depois de passar anos usando seu software e se acostumando com sua interface e recursos.
Exploração do trabalho
O colonialismo digital também fica evidente na forma como os países de todo o Sul Global são fortemente explorados no trabalho braçal, para fornecer insumos essenciais para as tecnologias digitais. Há muito tempo observa-se que a República Democrática do Congo fornece mais de 70% de todo o cobalto do mundo, um mineral essencial para as baterias usadas em carros, smartphones e computadores. Quatorze famílias do Congo estão atualmente processando a Apple, Tesla, Alphabet, Dell e Microsoft, acusando-as de se beneficiarem do trabalho infantil na indústria de mineração de cobalto. O próprio processo de mineração desses metais tem um impacto muitas vezes adverso na saúde dos trabalhadores e nos habitats vizinhos.
Quanto ao lítio, as principais reservas estão localizadas no Chile, Argentina, Bolívia e Austrália. Os salários dos trabalhadores em todos os países da América Latina são baixos para os padrões dos países ricos, principalmente, ao considerarmos as condições de trabalho que enfrentam. Embora a disponibilidade de dados varie, no Chile os empregados das minas ganham algo entre 1.430 e 3.000 dólares por mês, enquanto na Argentina os salários mensais podem ser tão baixos quanto entre US$300 e US$1.800. Em 2016, o salário mínimo dos mineiros na Bolívia foi aumentado para 250 dólares por mês. Em contraste, os mineiros australianos ganham cerca de 9.000 dólares por mês e podem chegar a 200.000 por ano.
Os países do Sul também oferecem uma abundância de mão de obra barata para os gigantes da tecnologia. Isso inclui o registro de dados para conjuntos de inteligência artificial, funcionários de call centers e moderadores de conteúdo para gigantes das mídias sociais como o Facebook. Os moderadores de conteúdo limpam os feeds de mídia social de conteúdo perturbador, como sangue ou material sexualmente explícito, o que muitas vezes os deixa psicologicamente perturbados. Ainda assim, um moderador de conteúdo em um país como a Índia pode ganhar apenas 3.500 dólares por ano — e isso após um aumento salarial de US$1.400.
Império digital chinês ou norte-americano?
No Ocidente, muito se fala sobre “uma nova Guerra Fria”, com os EUA e a China lutando pela supremacia tecnológica global. No entanto, um olhar mais atento sobre o ecossistema de tecnologia mostra que as corporações dos EUA são muito mais dominantes na economia global.
A China, após décadas de alto crescimento, gera cerca de 17% do PIB global e prevê-se que ultrapasse os EUA em 2028, alimentando as alegações de que o império norte-americano está em declínio (uma narrativa que anteriormente era popular com a ascensão do Japão). Ao medir a economia chinesa pela paridade do poder de compra, ela já é maior do que a dos EUA. No entanto, como aponta o economista Sean Starrs, essa visão trata erroneamente os Estados como unidades independentes, como se eles “interagissem feito bolas de bilhar numa mesa”. Starrs afirma que, na realidade, o domínio econômico americano “não diminuiu, ele se globalizou”. Isso é particularmente verdadeiro quando se olha para a Big Tech.
No período pós-Segunda Guerra Mundial, a produção corporativa espalhou-se por redes de produção transnacionais. Por exemplo, na década de 1990, empresas como a Apple começaram a terceirizar a fabricação de eletrônicos dos EUA para a China e Taiwan, explorando trabalhadores em fábricas precárias, empregados por empresas como a Foxconn. As transnacionais norte-americanas de tecnologia, por exemplo, muitas vezes asseguram a propriedade intelectual sobre roteadores de alto desempenho (como a Cisco), enquanto terceirizam a capacidade de produção para fabricantes de hardware no Sul.
Starrs traçou o perfil das duas mil principais empresas de capital aberto do mundo, conforme classificado pela Forbes Global 2000, e as organizou em 25 setores, mostrando o domínio das transnacionais dos Estados Unidos. Em 2013, eles dominavam 18 dos 25 principais setores — em termos de participação nos lucros. Em seu próximo livro O poder americano globalizado: repensando o poder nacional na era da globalização, Starrs mostra que os EUA continuam dominando. Em software e serviços de TI, a participação dos EUA nos lucros é de 76% contra 10% da China; para Tecnologia de Hardware e Equipamentos, é de 63% para os EUA contra 6% para a China, e para Eletrônicos, é de 43% e 10%, respectivamente. Outros países, como Coréia do Sul, Japão e Taiwan, costumam sair-se melhor do que a China no quesito de lucros.
Retratar os EUA e a China como concorrentes iguais na batalha pela supremacia global da tecnologia, como costuma ser feito, é, portanto, altamente enganoso. Por exemplo, um relatório de “Economia Digital” elaborado pelas Nações Unidas em 2019, afirma que: “A geografia da economia digital está altamente concentrada em dois países” — os Estados Unidos e a China. Mas o relatório não apenas ignora fatores identificados por autores como Starrs, mas também deixa de levar em conta o fato de que a maior parte da indústria de tecnologia da China é dominante apenas dentro do próprio país — exceto um punhado de produtos e serviços importantes, como 5G (Huawei), câmeras CCTV (Hikvision, Dahua) e redes sociais (TikTok), que também detêm grandes quotas de mercado no estrangeiro. A China também tem investimentos substanciais em algumas empresas estrangeiras de tecnologia, mas isso dificilmente sugere uma ameaça genuína ao domínio dos EUA, que também tem uma parcela muito maior de investimentos estrangeiros.
Na realidade, os EUA são o império tecnológico supremo. Fora das fronteiras dos Estados Unidos e da China, os Estados Unidos lideram nas categorias de mecanismos de pesquisa (Google); navegadores da web (Google Chrome, Apple Safari); sistemas operacionais para smartphones e tablets (Google Android, Apple iOS); sistemas operacionais de desktop e laptop (Microsoft Windows, macOS); softwares de escritório (Microsoft Office, Google G Suite, Apple iWork); infraestrutura e serviços de nuvem (Amazon, Microsoft, Google, IBM); plataformas de redes sociais (Facebook, Twitter); transporte (Uber, Lyft); redes de negócios (Microsoft LinkedIn); streamings de entretenimento (Google YouTube, Netflix, Hulu) e publicidade online (Google, Facebook) — entre outros.
Enfim, seja você um indivíduo ou uma empresa, se estiver usando um computador, as empresas norte-americanas serão as que mais se beneficiarão. Eles são os donos do ecossistema digital.
A dominação política e os meios de violência
O poder econômico dos gigantes da tecnologia norte-americana anda de mãos dadas com sua influência nas esferas política e social. Assim como em outros setores, existe uma porta giratória entre os executivos da tecnologia e o governo dos Estados Unidos, e as corporações de tecnologia e alianças de negócios gastam muito fazendo lobby por regulamentos que tragam políticas favoráveis a seus interesses — e ao capitalismo digital, em geral.
Por sua vez, governos e agências de aplicação da lei formam parcerias com gigantes da tecnologia para fazer o trabalho sujo. Em 2013, Edward Snowden revelou que Microsoft, Yahoo, Google, Facebook, PalTalk, YouTube, Skype, AOL e Apple compartilhavam informações com a Agência de Segurança Nacional por meio do programa PRISM. Mais revelações se seguiram, e o mundo aprendeu que os dados armazenados por empresas e transmitidos pela Internet são sugados por enormes bancos de dados governamentais, para exploração pelos Estados. Países do Sul têm sido alvos de vigilância da NSA, desde o Oriente Médio até a África e América Latina.
A polícia e os militares também trabalham com empresas de tecnologia, e estas ficam felizes em receber cheques recheados pelo fornecimento de produtos e serviços de vigilância, inclusive em países do Sul. Por exemplo, por meio de sua pouco conhecida Divisão de Segurança Pública e Justiça, a Microsoft construiu um amplo ecossistema de parceria com fornecedores de vigilância “policiais”, que executam sua tecnologia na infraestrutura de nuvem da Microsoft. Isso inclui uma plataforma de vigilância de comando e controle que abrange uma cidade por inteiro, que se chama “Microsoft Aware”. Ela foi comprada pela polícia no Brasil e na Cingapura; e possui, também, uma solução de veículo policial com câmeras de reconhecimento facial, que foi implementada nas cidades do Cabo e Durban, na África do Sul.
A Microsoft também está profundamente envolvida com a indústria carcerária. Ele oferece uma variedade de soluções de software prisional que cobrem todo o processo, desde “infratores” juvenis até o pré-julgamento e liberdade condicional, passando pela cadeia e outros tipos de prisão, bem como aqueles que foram libertados e colocados em liberdade condicional. Na África, a Microsoft fez parceria com uma empresa chamada Netopia Solutions, que oferece uma plataforma de software de gerenciamento de prisão (PMS) que inclui “gerenciamento de fuga” e análises de prisioneiros.
Embora não esteja precisamente claro onde esse gerenciamento de prisões da Netopia é implantado, a Microsoft afirmou que “a Netopia é [um parceiro/fornecedor da Microsoft] no Marrocos, com foco centrado na profunda transformação digital dos serviços governamentais da África do Norte e África Central”. O Marrocos possui um forte histórico de tortura de dissidentes e prisioneiros, e recentemente, os Estados Unidos reconheceram sua anexação do Saara Ocidental, na contramão do direito internacional.
Durante séculos, as potências imperiais primeiro testavam as tecnologias de policiamento e controle de seus cidadãos em populações estrangeiras — desde o trabalho pioneiro de Sir Francis Galton em impressões digitais, aplicadas na Índia e na África do Sul, até a combinação da biometria e de inovações na gestão de estatísticas e dados que formaram o primeiro aparelho moderno de vigilância para pacificar as Filipinas. Como demonstrado pelo historiador Alfred McCoy, a série de tecnologias de vigilância implantadas nas Filipinas ofereceu um campo de testes para um modelo que acabou sendo reintroduzido nos Estados Unidos, com o objetivo de ser usado contra dissidentes domésticos. Os projetos de vigilância de alta tecnologia da Microsoft e de seus parceiros sugerem que os africanos continuam a servir como laboratório de experimentos carcerários.
Conclusão
A tecnologia digital e a informação desempenham um papel central na política, economia e vida social em qualquer lugar do mundo. Como parte do projeto do império americano, as corporações transnacionais dos EUA estão reinventando o colonialismo no Sul por meio da aquisição e controle da propriedade intelectual, da inteligência digital e dos meios de computação. A maior parte da infraestrutura básica, indústrias e funções desempenhadas por computadores são propriedade privada de corporações transnacionais norte-americanas, que são amplamente dominantes fora das fronteiras dos Estados Unidos. As maiores empresas, como a Microsoft e a Apple, dominam as cadeias de suprimentos globais como monopólios intelectuais.
Segue-se um intercâmbio e divisão do trabalho desiguais, que reforçam a dependência na periferia, enquanto perpetuam a miséria em massa e a pobreza global.
Em vez de compartilhar conhecimento, transferir tecnologia e fornecer ferramentas para construir uma prosperidade global, em termos de igualdade, os países ricos e suas corporações visam proteger sua vantagem e sacudir o Sul em busca de mão de obra barata e extração de renda. Ao monopolizar os principais componentes do ecossistema digital, impondo sua tecnologia em escolas e programas de treinamento, e fazendo parcerias com elites corporativas e estatais no Sul, a Big Tech conquista mercados emergentes. Inclusive para lucrar com os serviços de vigilância fornecidos aos departamentos de polícia e prisões.
Mesmo assim, contra as forças do poder concentrado, sempre há aqueles que se defendem. A resistência à Big Tech no Sul Global tem uma longa história, que remonta aos dias dos protestos internacionais contra IBM, Hewlett Packard e outras empresas que faziam negócios na África do Sul do apartheid. No início dos anos 2000, os países do Sul Global adotaram o software livre e os bens comuns globais como um meio de resistir ao colonialismo digital por um tempo, mesmo que muitas dessas iniciativas tenham desaparecido desde então. Nos últimos anos, novos movimentos contra o colonialismo digital vêm surgindo.
Há muito em andamento, nesse cenário. Uma crise climática criada pelo capitalismo ameaça, cada vez mais rápido, destruir permanentemente a vida na Terra — e as soluções para a economia digital devem se encontrar com a justiça ambiental e com lutas mais amplas pela igualdade.
+ Quem contribui com Outras Palavras ganha 25% de desconto nos livros da editora Autonomia Literária
Para erradicar o colonialismo digital, precisamos de uma estrutura conceitual diferente, que desafie as causas raízes e os principais atores, em sintonia com os movimentos de base dispostos a enfrentar o capitalismo e o autoritarismo, o império norte-americano e seus apoiadores intelectuais.
Texto original : OUTRAS PALAVRAS
Nenhum comentário:
Postar um comentário