Por Maria Fernanda Arruda – do Rio de Janeiro:
No seu nível inferior, a alfabetização rudimentar permite a leitura e compreensão de títulos de textos e frases curtas, bem como a compreensão de números menores e capacidade para operações aritméticas básicas. Em seguida, a alfabetização básica, que permite a leitura de textos curtos, extrair deles informações esparsas, mas não uma conclusão sobre o que se leu. A soma dos dois estágios ganha o nome de analfabetismo funcional. No Brasil, em 2005, os dados disponíveis, indicam que ele chega a 68% da população. Como 7% dela é composta por analfabetos, tem-se que 75% dos brasileiros não sabe ler e escrever adequadamente.
Em 2012, o Instituto Paulo Montenegro e a ONG Ação Educativa informaram o Indicador de Alfabetismo Funcional (INAF), mostrando 38% dos estudantes universitários são analfabetos funcionais. Esses são números que não surpreendem. Como assim? É sabido, por exemplo, que menos de 10% dos advogados formados são aprovados em provas de habilitação promovidas pela OAB; e a leitura de uma mostra das provas escritas pelos candidatos deixa claro que em torno de 40% deles é formada por analfabetos funcionais.
Maria Fernanda Arruda |
De acordo com a Constituição, a União é responsável por elaborar o Plano Nacional de Educação, com a colaboração dos Estados e Municípios. A União deverá organizar e manter órgãos de ensino,compondo um sistema federal (basicamente, as Universidades Federais). Os Estados, da mesma forma,irão organizar e manter órgãos de ensino, concentrando sua ação direta no Ensino Médio. Os municípios atuarão nos níveis de ensino fundamental (especialmente), médio e educação infantil. E assim coloca-se o primeiro problema: a descentralização constitucional é totalmente irreal. As prefeituras mal mantém uma rede insuficiente de creches e os prefeitos, em regra negociantes-políticos, associam-se às empresas privadas que mercadejam ensino. Não são muitos os Estados que contam com competências para organizar e manter escolas. Com olhos para enxergar a realidade, não se pode negar que a grande autoridade e responsabilidade pelo ensino devem ser de competência da União, cabendo aos Estados e Municípios a execução de tarefas definidas detalhadamente pelo Ministério da Educação (MEC).
O mal-feito constitucional tem permitido uma interpretação nebulosa quanto às responsabilidades, inclusive no que diz respeito à rede privada de ensino. As interpretações nebulosas são como regra mal intencionadas e de conotação política. Um caso gritante: o governo do Estado de São Paulo negou-se a cumprir a determinação do MEC que torna obrigatórias as matérias de Filosofia e Sociologia no Ensino Médio. É que as escolas privadas orientam-se em primeiro lugar pelas preferências ditadas pelo mercado (que é imediatista e consumista; no caso, os pais), o que permitiu, por exemplo, a transformação do Ensino Médio em “pré-vestibular”, uma vez que as famílias não estão preocupadas na formação dos filhos, mas nas informações que os levem à faculdade.
A criação de monstros, os universitários analfabetos funcionais, tem a sua origem na desnaturação do Ensino Médio. A própria Constituição reconhece a importância imensa desse nível de ensino, dando a ele a responsabilidade pelo aprimoramento do educando como pessoa humana, incluindo a formação ética e o desenvolvimento da autonomia intelectual e do pensamento crítico. Para existir com qualidade, a Universidade precisa receber, não os aprovados em vestibulares montados de forma convencional e primária, mas os que tenham durante três anos aprendido a pensar criticamente, para serem indivíduos e cidadãos maduros. Mas o desafio do vestibular faz com que a grande maioria dos pais procurem as escolas que se ajustaram para ser “cursinhos”.
Durante o governo FHC, o MEC, sob orientação de Paulo Renato Souza preparou o cometimento do crime da privatização do ensino. Mas deixou um legado positivo, na forma dos Parâmetros Curriculares que elaborou e divulgou. Esses parâmetros criaram a possibilidade de avanços muito expressivos na orientação pedagógica e didática das escolas brasileiras, ensinando a ênfase a ser dada aos chamados temas transversais, à interdisciplinaridade, à contextualização, e valorizando a visão ética e a pluralidade cultural. Foi a partir daí que a História abandonou a versão anacronicamente oficial, para abrir espaços para o papel desempenhado pelo povo brasileiro, oferecendo aos alunos a possibilidade de aprender e valorizar culturas, tanto as indígenas, como as africanas.
Os parâmetros propostos pelo MEC teriam colhido resultados muito melhores, não fossem: aquela distribuição de atribuições definidas na Constituição, já comentadas, e que obriga a ser dado a esses parâmetros o caráter de propostas flexíveis; o irrealismo dos que imaginam fazer o Brasil em Brasília; a aceitação do pressuposto neoliberal, segundo ele não cabendo numa sociedade democrática a intervenção do Estado,
Cabe sim, e mesmo os governos do PT não se deram conta disso. O Estado, eleito pelo povo democraticamente, traz consigo a proposta de uma organização social e de Nação. E a escola precisa ser orientada para a formação de indivíduos e cidadãos que possam conviver harmoniosamente nessa sociedade nacional. Toda a “paidéia” grega é orientada nesse sentido, levando à formação do cidadão. O MEC nasceu em 1930 com esse objetivo e teve competência para levar às escolas os valores culturais do povo brasileiro.
Sejamos coerentes. O Estado não pode aceitar a escola que transmita valores culturais de outros povos, produzindo etnocentrismos equivocados, que menosprezam a cultura nacional. O Estado não pode aceitar escolas confessionais que reneguem a cultura nacional, que transformem o Saci, o Curupira, a Iara … em símbolos demoníacos, divulgando a intolerância religiosa.
A existência e convivência da escola pública e escola privada é histórica no Brasil. Mas havia no MEC a competência para harmonização, definição de currículos, aprovação de material didático a ser utilizado, cargas horárias, qualificação dos professores. Não só eram emitidos normas e procedimentos, como o MEC inspecionava as escolas e avaliava os alunos. Com a renúncia a essa autoridade, criou-se a liberdade de improvisação comercial do ensino. Ainda durante grande parte do século XX, o Brasil teve uma rede de escolas públicas de alta qualidade, juntando-se a ela o conjunto de escolas privadas, mais frequentemente confessionais, católicas, voltadas para educação das elites e por isso mesmo oferecendo qualidade, somando-se a elas as que nasciam da vocação pedagógica de professores competentes. O processo de aviltamento é recente.
A escola pública foi propositadamente empobrecida, colocando professores, pagos miseravelmente e despreparados ao máximo do absurdo, a lecionar em prédios impróprios, sujos, desequipados. Objetivo alcançado: a escola pública é hoje sinônimo de falta completa de qualidade. E enquanto isso, as facilidades e atrações criadas fizeram proliferarem as escolas privadas, negócios montados por comerciantes que querem ganhar dinheiro e fazer fortuna, tendo preterido o açougue ou a quitanda para instalarem uma aparência de “escola”. Os donos de escolas não precisam demonstrar competência para coisa alguma, além das qualificações que os fazem argentários.
Segundo a Constituição, a União é responsável por elaborar o Plano Nacional de Educação, com a colaboração dos Estados e Municípios |
Nas escolas privadas, um professor, explorado ao máximo inaceitável, deve ter três empregos, lecionar em três escolas, fazer 40 aulas semanais, para ter padrão de vida de quase mendigo. Essas escolas têm adotado cada vez mais a assessoria dos chamados “sistemas de ensino”, conjunto de matérias pré-elaboradas, cadernos para os alunos (material não submetido a exame pelo MEC) e mais manuais dos professores, que são assim transformados em pequenos “repetidores de aula”.
Restaram e muito poucas e caríssimas as escolas privadas de alto padrão, destinadas com exclusividade às elites, formando elitistas, agrupando-os em estamentos, preparando-os para gerir a Nação. Pouco, quase nada, nada mesmo, para um Brasil que se apresentou como Pátria Educadora.
Se pretendem enxergar e entender o Brasil, o MEC e o Governo devem entender uma realidade que não chega até Brasília. Há o óbvio ululante: a falta de recursos materiais e humanos, o que todos reconhecem. Mas é o começo de um drama muito mais extenso. O neoliberalismo de oito anos de governo fortaleceu uma rede de escolas lastimável. Então, o que significa tornar obrigatórios o ensino de Filosofia e Sociologia no Ensino Médio? Onde estarão os professores preparados para assumir isso? Como fazer, se a escola privada não abre mão de 22 aulas semanais, contra aquelas 30, que existiram até recentemente? Como adotar procedimentos e padrões competentes, se a escola está preocupada em agradar à clientela, formada por pais criados à sobra das ditaduras, primeiro a política, em seguida a mercadológica? Pai de aluno quer vê-lo entrando na Faculdade, sem influências deletérias de professores de esquerda; e já existem deputados bem orientados e que estão empenhados em impedir isso, pleiteando o professor que seja o antípoda do Professor.
Caso a Pátria Educadora possa oferecer creches em número suficiente para mal abrigar todos os filhos de pais que vão para o trabalho; caso adote sistemas de avaliação que levem a um rápido diploma; caso dispense a participação dos pais e aceite a indisciplina e banditismos de pequenos heróis-predadores; caso assegure a universidade para todos, e então ela será reconhecida e elogiada por todos. Reconheça-se: grande parte dos problemas educacionais no Brasil não são mais do que problemas de má ou falta total de educação familiar.
Sociedade ainda estruturada nos moldes da casa grande & senzala, a brasilidade armazena o ideal da ‘doutoragem’: o que não é doutor de nada e por nada, mas que saiu de uma faculdade. No mundo da República Velha, do mandonismo dos coronéis, os filhos desnecessários ao zelo do patrimônio, ao menos doutores precisavam ser. E o que mudou na modernidade dos nossos tempos?
Inevitável, a visão de mundo da casa-grande é hegemônica. Só o trabalho do doutor advogado, ou médico, ou engenheiro é capaz de enobrecer. Muito abaixo disso ficam as pequenas profissões das classes médias que precisam de ordenado a receber no fim do mês: bancários, balconistas, enfermeiros e taxistas. No final: a classe operária, segregada, posta nos bairros operários de periferia. Vetados a ela, sejamos claros e bem honestos: os bairros melhores, os clubes, as livrarias (elas, também e sim senhor). Até o surgimento do Bradesco do Amador Aguiar, operário não devia entrar em banco (anos de 1960) e a lei mandava que ele fosse pago em moeda nacional corrente.
Em meados dos anos de 1970, apenas entre os operários qualificados (já experimentando nível salarial bem superior ao de gerente de banco) havia uma porcentagem mais expressiva (algo como 40%) que aceitava ter filho operário e sindicalizado. Entre os semi-qualificados, a grande maioria do proletariado, não admitia simplesmente essa hipótese: “trabalho para por o meu filho na faculdade”.
Lula, torneiro mecânico, foi um operário qualificado. Lula, Presidente da República quer a universidade para todos. E para isso criou o PROUNI, o FIES. Faltou quem lhe dissesse: “Lula, isso é utópico e uma utopia equivocada. Primeiro, vamos lutar por uma sociedade democrática, botar abaixo os valores da casa grande. É preciso antes ter uma democracia, para que ela construa a universidade do povo e para o povo. A que está aí foi criada pelas elites, para as elites e mais recentemente vulgarizada como mais um produto de consumo, comprável a prestação”.
Na busca desse objetivo, o da “Universidade para Todos”, foram criadas 18 novas universidades, rompendo-se com a política neoliberal do período FHC. Isso não foi entendido como suficiente, adotando-se então o uso alternativo de universidades privadas. Há nisso uma renúncia à qualidade? Fora de dúvida: mesmo as universidades públicas enfrentam muitas carências, mas mantém sempre padrões de seriedade e compostura. Mas, entre as 50 melhores, conforme critérios do próprio MEC, apenas as Universidades Católicas e a do Vale dos Sinos têm presença constante.
Ao prestigiar as universidades privadas, na sua grande maioria empresas que fazem negócios de ensino, com a concessão de bolsas e financiamentos, o MEC assume um triste papel de agente ativo em contos do vigário: não estão dando nada de valor ao estudante brasileiro, mas vendendo-lhe o sonho vão de ascensão social. Na verdade, o MEC acaba instituindo um PROER dessas empresas, que se dimensionaram para uma demanda inflada pelas facilidades criadas por ele. Como resultado final é termos a formação em linha-de-montagem dos analfabetos funcionais.
O excesso absurdo de facilidades embutidas no FIES foram recentemente podadas e o sistema foi moralizado. Mas o grande problema permanece: não é pelo caminho da “universidade para todos” que estarão sendo abertos caminhos para integração social plena do povo.
A Universidade nasceu da iniciativa das elites e para as elites. É preciso que se lute por uma estrutura social humana e justa, para que então o povo construa a Universidade do Povo. Uma vez estivemos próximos disso, com o modelo de Darcy Ribeiro para a Universidade de Brasília; a gana com que a Ditadura a destruiu confirma isso.
Sempre existirá numa sociedade nova espaço para a atividade acadêmica, que poderá ser exercitada então em moldes democráticos. Mas não se confundirá com a formação técnica competente que efetivamente qualifique o cidadão para ocupar e desempenhar com eficiência funções no processo de produção de bens e serviços. O modelo de Darcy Ribeiro contemplava isso e libertava o ensino técnico da marca de inferioridade que a sociedade elitista impõe a ele.
Os governos do PT foram os primeiros a ter preocupação real com o ensino a ser oferecido ao povo. Mas tiveram que se empenhar em oferecer quantidade, que antes estava sendo quase nenhuma. Quando a primavera voltar, deseja-se que se criem condições para oferecer qualidade. Então, será necessário ser menos reformista e mais revolucionário: não é a Universidade que construirá uma nova sociedade: ela é que criará a nova Universidade.
Maria Fernanda Arruda é escritora, midiativista e colunista do Correio do Brasil, sempre às sextas-feiras.
Texto original: CORREIO DO BRASIL
Texto replicado: DEBATENDO A EDUCAÇÃO
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