Christine Castilho Fontelles / 23 de agosto de 2019 / 292
Ler a coluna da jornalista Eliane Brum não é para @s frac@s, como se diz por aí. Se você ainda não leu, reforço o convite. É um exercício fundamental de reorganização das ideias e das certezas, em especial a falsa ideia e certeza acerca da humanidade que habita em nós, entendendo por humanidade a capacidade de sentir e promover empatia, alteridade, acolher, coexistir, respeitar, cuidar, amar todas as vidas. O estilo de seus textos, conhecido como jornalismo literário, promove uma experiência de empatia incomum ou impossível no jornalismo tradicional.
Diferente dos livros de literatura, o horror está no fato de que não se trata de ficção, de passado ou futuro remotos, é no aqui e no agora, no chão que a gente não pisa, porque geralmente está bem distante das nossas calçadas, das nossas vistas e, ainda que próximos dos nossos olhos que correm apressados dados de reportagens sobre miséria, chacina e morte, não nos sensibiliza, não nos mobiliza para um #JeSuis/#EuSou/#MeToo. É de se perguntar o porquê e temer a resposta.
Assim me pegou semana passada este artigo sobre as crianças de Altamira, onde a jornalista mostra com todas as tintas o horror anunciado nas trilhas construídas há muitos anos até chegarmos aqui, mostrando, de novo, que Nelson Rodrigues sempre esteve certo: subdesenvolvimento não se improvisa, é obra de séculos. E daí eu me pergunto se o que penso, o que faço, o que sou, a causa pela qual advogo há tanto tempo, que importância tem diante de Altamira, nome de cidade que aprendi há uns 10 anos num momento lindo que foi conhecer um jovem que havia sido um dos ganhadores de um concurso de redação em nível nacional que realizava na organização na qual trabalhava àquela época.
Ironicamente Altamira, palavra de origem teutônica (alemã) significa “brilhante”. Tudo o que brilha em Altamira é desconsolo. Brilha e grita. Mas ninguém está vendo ou ouvindo. E se vê e ouve, nada faz. Então, neste momento, como em tantos outros e em tantos lugares nesta estrada onde estou há mais de vinte anos, reafirmo minha convicção sobre a importância vital de garantir que todos os recursos existam e estejam à disposição de toda a população para assegurar a posse da palavra, para anunciar e denunciar, para narrar e resistir, para mudar os rumos da história onde a vida e os sonhos de muitos são soterrados em nome da ganância desenfreada, e da garantia do direito à literatura, como diz Antônio Cândido sobre a literatura, “pelo fato de dar forma aos sentimentos e à visão do mundo ela nos organiza, nos liberta do caos e portanto nos humaniza”.
É com esta convicção em punho que escrevo sobre a aprovação do projeto de Lei 9484/18, também anunciada semana passada na Câmara de Comissão Justiça e Cidadania. O PL é de autoria da deputada Carmen Zanotto (Cidadania-SC) e da ex-deputada Laura Carneiro, e visa complementar a Lei 12.244/10, que determina a universalização de bibliotecas nas escolas públicas e privadas do País. Trata-se, sem dúvida, de um novo marco legal de extrema importância para a efetividade do direito e trata de parâmetros, que são fundamentais para que a biblioteca não seja entendida apenas como um depositório de livros, assim como é vital a criação de Sistema Nacional de Bibliotecas em Escolas, viabilizando obter cenário e partilha, como ocorre no exitoso programa de bibliotecas escolares de Portugal.
Já sabemos que o impacto que uma biblioteca pode promover está diretamente relacionado à qualidade de seus insumos, profissionais, ações de promoção de leitura e da bibliodiversidade presente em seu acervo – falei sobre em recente artigo publicado na Biblioo. Portanto, é fundamental que nas Bibliotecas atuem profissionais que sejam leitoras(es) de fato, que apoiem a jornada leitora de suas(seus) frequentadoras(es), que ponham leitoras(es) em contato com outras(os) leitoras(es), que ofereçam leitura de obras que transcendem o lugar e o senso comum.
Bibliotecas onde circulam leituras que nos instiguem a indagar a vida, que ampliam nossos horizontes de pensamento para muito além das superficialidades que trafegam pelas mídias, sempre tão carregadas de ódio movido a preconceitos. Bibliotecas empenhadas em ativar pela leitura a razão intelectual e a razão sensível, condição sine qua non para pensarmos e atuarmos em favor da vida digna e de qualidade para tod@s; que nos alimentem de referências e encantamento para promover o mínimo de dano e o máximo de bem. Porque o melhor lugar do mundo é aqui e agora, no chão que a gente pisa, daqui até Altamira e além.
Como diz o Prof. Luiz Percival Leme de Britto[1], “se o que se busca é promover a leitura como valor, é imperativo encontrar estratégias mais densas e mais fundamentadas de estimular a leitura, reconhecendo que ler, em muitas situações, é difícil e que a satisfação que daí se pode retirar é de natureza muito distinta da que oferece o entretenimento cotidiano”.
Considerações feitas, partilho minhas reflexões sobre a importância de existirem alguns destaques do PL 9484/18:
- Artigo 2º., como objetivo principal, como função social da biblioteca da escola: “promover as habilidades, competências e atitudes que contribuam para a garantia dos direitos e objetivos de aprendizagem e desenvolvimento dos(as) alunos(as) NO CAMPO da leitura e da escrita” – na versão atual está “em especial no campo da leitura e da escrita”, sendo que está como item II e não item I. Esta alteração de disposição na redação do artigo tem a ver com o fato de que estamos diante de um desafio civilizatório que merece a máxima focalização, além de que tecnologias são suportes, são meios, os quais só podem ser acessados de forma exitosa se, antes, as habilidades de leitura e comportamento leitor estiverem consolidados. Tal premissa é atualmente ainda mais significativa, pois é pré-requisito para que crianças e jovens em formação – mas também adultos – não se percam nas fake news, que promovem o preconceito e obstaculizam a aprendizagem e disposição ao diálogo democrático;
- Artigo 2º. item IV: A Biblioteca da escola deve ser lugar de encontros e de estudo, mas é fundamental não confundir este espaço com o de entretenimento ou lazer, assim como não se aplica ao laboratório de ciências ou de informática ou à própria sala de aula, que são locais de aprendizagem. É muito comum em nossa sociedade buscar alternativas para a biblioteca que não a leitura porque acredita-se que, com outras atividades, a biblioteca poderá formar leitoras(es). Ocorre que se assim fosse, se outras estratégias que não a leitura formasse leitoras(es), não teríamos os índices negativos que temos. Para expressar um pensamento sobre a biblioteca da escola conectada com os desafios da formação de leitoras(es) e também das oportunidades para sua formação recorro novamente ao professor Luiz Percival: “Se não se quer que a biblioteca (e a escola) seja o lugar de submissão ao autoritarismo, tampouco se deseja que ela seja o lugar da mesmice cotidiana, da repetição do óbvio. Para desmontar a armadilha, é preciso propugnar para que as atividades escolares – nas salas de aula e na biblioteca – se organizem com base em questões que provoquem a crítica à realidade e uma relação criativa com o conhecimento, buscando o diálogo entre o saber sensível-prático (aquilo que as pessoas trazem de sua experiência imediata) e o patrimônio científico produzido pela humanidade. Esse caminho se trilha com atividades de estudo e de experimentação estética, com projetos sistemáticos de leitura de textos, grupos de pesquisa, clubes de leitores, sessões de leitura pública, espaços de estudo individual, com roteiros e bibliografias sugeridos pelos professores”;
- Artigo 2º. item V: É extremamente importante que a biblioteca da escola atenda a comunidade do seu entorno, seja porque inexistem bibliotecas públicas em quantidade suficiente seja porque em muitas localidades no Brasil, mesmo nas metrópoles, a escola é o único local de acesso à cultura e à educação, seja porque a formação de leitoras(es) passa, e muito, pelo apoio e pela participação da família. Neste sentido, a proposição para um novo item neste PL é: Ser espaço de estudo e acesso gratuito aos livros e às leituras, destinado a servir de oportunidade para que a comunidade do entorno, em especial as famílias das(dos) estudantes matriculadas(os) na escola, possa também ter a oportunidade de formar-se leitora e participar ativamente da formação leitora de crianças e jovens, em parceria com a escola;
- Inciso 1º, item II : Igualmente importante destacar com relação à criação do Sistema Nacional de Bibliotecas Escolares (SNBE), de que trata o inciso 1º., como funções básica, item II: “Promover a qualificação e melhoria do funcionamento da atual rede de bibliotecas escolares para que atuem como centros de formação leitora, centros de ação e educacional permanentes”. Esta é uma premissa fundamental visto que é observado que em muitas bibliotecas escolares ocorrem diversas atividades lúdicas, de entretenimento e mesmo de realização de eventos escolares que não têm a ver com formação leitora. Acredito que marcar esta posição é fundamental para desconstruir, ao invés de reafirmar, a compreensão equivocada e de senso comum sobre ações promotoras de leitura, o que faz com o que a biblioteca seja espaço que abriga teatro, cinema, exposições, oficinas de artesanato etc, que não resultam em formação leitora;
- Inciso 1º., itens III e IV, destaco a importância da bibliodiversidade. Novamente recorro ao Prof. Luiz Percival para falar do acervo da biblioteca da escola: “O acervo da biblioteca escolar, considerando sempre o nível de autonomia e de desenvoltura intelectual dos usuários, precisa incluir obras de ciência, história, geografia, psicologia, literatura, artes e organizar-se de forma a permitir percursos formativos amplos e densos. Sua funcionalidade depende, em grande medida, de como a comunidade da escola abraça um projeto de formação que toma a interdisciplinaridade como eixo e avança para além do espaço-aula”. É preciso muita acuidade para pensar o acervo das bibliotecas das escolas – aliás, de todas as bibliotecas -, justamente porque concordamos com a máxima do professor Antonio Candido sobre a potencialidade de humanização da literatura, neste País é vital focalizar na presença de literatura de autoras(es) negras(os) e indígenas, ouvir, ler, incorporar, encarar e cuidar para que, de fato, o racismo seja banido de mentes, corações, ações, do chão que a gente pisa até Altamira e além;
- Inciso 1º., item V, importante que haja destaque para caracterização da formação/treinamento/qualificação de recursos humanos para o funcionamento adequado das bibliotecas escolares. Daí sugestão da seguinte redação: “desenvolver atividade de treinamento e qualificação de recursos humanos nas bibliotecas tendo como premissa que também sejam leitoras(es), para que apoiem a jornada leitora dos(as) estudantes, que ofereçam leitura de obras que transcendem o lugar e o senso comum, que façam circular leituras que instiguem a indagar a vida, leituras que promovam a razão intelectual e a razão sensível, para dar conta das tarefas escolares de sua vida acadêmica e de seu projeto de vida”;
- Inciso 1º. item VIII: na mesma linha que sobre a importância de destacar o compromisso da biblioteca da escola como formadora de leitoras(es), a sugestão de acréscimo na redação: “favorecer a ação dos sistemas estaduais e municipais…….atuem como promotores de leitura, em favor do pleno desenvolvimento das habilidades de leitura e escrita dos(a) estudantes, apoiando também a formação leitora da comunidade do entorno, promovendo a integração da biblioteca como projeto político pedagógico das escolas;
- Inciso 1º., item X, inclusão da citação aos parâmetros de biblioteca preconizados pelo CAQ no PNE, observando a importância de que no espaço da biblioteca seja considerada a possibilidade de abrigar a presença de estudantes de uma sala de aula ao mesmo tempo, para que assim professores(as) possam propor ações de pesquisa e leitura compartilhada, fomentando reflexão e debate e a apropriação de referências sobre uso social deste espaço.
A acuidade é precisa e preciosa para que possamos empreender políticas e ações de formação leitora e escritora que, de fato, contribuam positivamente para a solução de déficits numéricos por trás dos quais há muita gente, geração após geração, que está alijada da possibilidade de exercer sua cidadania, de ser sujeito no mundo, de pensar e atuar para construir esta jornada, ainda longa demais, que nos levará a reconhecer nossa humanidade comum e promover o devido cuidado com todas as vidas. Sem a posse da palavra não há liberdade possível, aqui ou em Altamira e além.
[1] Doutor em Linguística e professor da Universidade Federal do Oeste do Pará, Luiz Percival Leme Britto atua na área de Educação e Linguagem como pesquisador, professor e formador de professores; coordena o Lelit – Grupo de pesquisa e intervenção em leitura, escrita e escola – e o Pacto Nacional pela alfabetização na idade certa – PNAIC / Oeste do Pará.
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