ENSAIO SOBRE A CEGUEIRA BRASILEIRA
por Ruben Bauer Naveira*
Amizades foram rompidas em seguida a postagens no Facebook; carros estacionados adesivados foram riscados; personalidades foram ofendidas em restaurantes; pessoas se permitiram assumir pública e abertamente seu ódio contra populações vulneráveis, contra programas sociais, contra a democracia. Os sinais são inequívocos: dias piores virão, tenha ganho Dilma ou tivesse ganhado Aécio. As fraturas históricas da sociedade brasileira ao invés de se consolidar se esgarçarão. Busco chegar às razões.
Recuso de pronto respostas que condenam a natureza humana. Devo, preciso, quero e continuarei a acreditar no ser humano. Na hora em que tanto ricos quanto ex-pobres recém-ascendidos à classe média votam de modo igualmente reacionário, a generalização simplória de rotular aqueles como mesquinhos enquanto estes como equivocados ou ludibriados não contribui para superar o dilema. Afora reverberar o vício da esquerda de presunção de uma superioridade moral, trata-se de olhar para o sintoma ao invés de para a causa.
Minha resposta me chegou de forma insólita. Estava em Inhotim, lugar brasileiro que é uma dádiva para todas as gentes do mundo, na galeria Miguel Rio Branco (uma dentre as vinte e duas de lá). Dali ninguém sai dizendo “gostei”. O que Rio Branco busca é desgostar, pela apresentação de um Brasil profundo, sórdido, cruel, cru e (muitas vezes literalmente) nu. Aquelas imagens da extrema degradação humana no bairro do Maciel no Pelourinho em Salvador na década de 70 me remeteram ao passado, um passado ao mesmo tempo distante (porque remonta ao holocausto dos índios a partir de 1500, seguido do tráfico de escravos da África) e próximo (porque ontem mesmo testemunhávamos tais cenas, e porque elas ainda teimam em não se deixar extinguir por completo).
Num estalo, me dei conta que, contra aquilo, não havia o ódio que há hoje. Pelo contrário, havia até compaixão. As mesmas pessoas que hoje não dão conta de tolerar que os pobres andem de carro ao invés de condução e que nas férias vão ao aeroporto ao invés da rodoviária, há pouco mais de uma década aceitavam sem maiores dificuldades aquela miséria atroz. Há que se buscar a resposta na correlação entre duas verdades em contradição: Por que a desigualdade extrema quase não incomodava, enquanto que a redução da desigualdade incomoda tanto?
É claro que a diferenciação social faz parte da explicação. É da natureza humana buscar distinguir-se em meio à multidão, para afirmação de cada individualidade singular. Thorstein Veblen em Teoria da Classe Ociosa narrou a história desse anseio, mostrando que as distinções honrosas que os homens das cavernas obtinham nas caçadas ou que os homens medievais obtinham na guerra, por intermédio das suas façanhas, proezas e atos de bravura, se transmutaram, nas sociedades modernas, na ostentação da riqueza, quando deter capacidade de consumo sem precisar trabalhar (a “classe ociosa”, os ricos) é o referencial social de status. É movidas a esse sonho que milhões de pessoas apostam todas as semanas na Megasena.
Ostentar riqueza só é distintivo porque poucos são ricos e muitos não são. No célebre ato falho cometido por Danuza Leão, “ir a Nova York ver os musicais da Broadway já teve sua graça, mas, por R$ 50 mensais, o porteiro do prédio também pode ir, então qual a graça?”
Isso não explica o Brasil. Esse fenômeno ocorre em todos os países, até mesmo naqueles mais igualitários, como os escandinavos ou o Japão. O ódio na luta de classes brasileira é em tal monta que a isso extrapola, em muito. A natureza humana é aqui insuficiente para explicar a natureza brasileira.
Há também fatores históricos, como a cultura do privilégio e o patrimonialismo (a apropriação do Estado por interesses privados reforçando a concentração da riqueza). Análise necessária, porém não bastante, para explicar nossa condição atual.
A explicação última, a meu ver, reside numa região mais profunda da psique brasileira: a crença (equivocada) de que o bem-estar seja um recurso escasso ao invés de abundante. Ao longo da nossa história, desde o Brasil-colônia, os estoques de bem-estar foram apropriados e defendidos pelas elites por modos exacerbadamente competitivos, predatórios, e mesmo violentos: farinha pouca meu pirão primeiro, e manda quem pode obedece quem tem juízo. Fomos levados a acreditar que nossos estoques de bem-estar somente possam ser conservados à custa do bem-estar dos demais. Isso acabaria valendo, ainda que em diferentes gradações, tanto para o rico quanto para o ex-pobre recém-ascendido à classe média, o que se expressa na tendência deste último a enxergar seu progresso mais como fruto do próprio mérito do que das políticas públicas.
Nossa cegueira é não enxergar que o Brasil é um país rico o suficiente para proporcionar bem-estar para a totalidade da sua população, sem que isso implique confisco indiscriminado dos estoques atualmente detidos (é claro que freios de arrumação haverá, por exemplo reforma tributária e fim dos privilégios à custa do Estado). Precisamos desarmar o gatilho automático da “farinha pouca”, vai dar para pilar mais farinha para todo mundo. Nossos recursos naturais são abundantes, água doce, minérios, biodiversidade, terras férteis, sol o ano inteiro. Sobre esse solo nós somos um povo criativo, alegre e fraterno como outro não há. Mais cedo ou mais tarde o Brasil cumprirá o destino de se tornar um país rico em que vive um povo rico: uma nação rica.
Nossa cegueira é, também, não enxergar que a manutenção de tamanha desigualdade em um país tão rico é uma macro-violência que acarreta inevitavelmente as micro-violências, num quadro de violência estrutural que a todos afeta e que neutraliza qualquer vantagem que possa advir do bem-estar material.
A crença no bem-estar como algo abundante é um valor a ser promovido num processo de mudança cultural da sociedade brasileira, juntamente com um entendimento geral a respeito de quanto bem-estar será provido a todos (para que não assumamos acriticamente que “bem-estar” seja nos tornarmos consumistas tanto quanto os americanos). Do contrário acabaremos um dia, desgraçadamente (e, pior, desnecessariamente), por lavar o Brasil em sangue. Isso a que aqui chamamos cegueira Caetano Veloso já havia chamado de burrice: ou então cada paisano e cada capataz / com sua burrice fará jorrar sangue demais / nos pantanais, nas cidades, caatingas, e nos gerais…
Deixo uma ideia, dirigida aqui ao prefeito de São Paulo Fernando Haddad: fazer erigir no parque do Ibirapuera o Museu da Desigualdade Brasileira, nos moldes da galeria Miguel Rio Branco de Inhotim, só que agora na escala devida. Um espaço que jogue luz sobre a história da relação entre a riqueza e a miséria brasileiras. É preciso ajudar os cegos a enxergar o óbvio que eles se recusam a ver – antes que seja tarde demais para todos nós.
Ruben Bauer Naveira tem 52 anos, é pai de dois filhos, tricolor de coração e cidadão brasileiro.
Leia também:
Texto original : VI O MUNDO
Nenhum comentário:
Postar um comentário