Por: Vladimir Safatle, no CartaCapital
A história tem lá sua ironia. Pense em um governo acusado de, durante décadas, alimentar um dos piores casos de corrupção do Brasil por meio do desvio de dinheiro de obras do Metrô de sua capital caótica. Como ele controla a Assembleia Legislativa e tem influência sobre certos integrantes do Poder Judiciário, o caso parece nunca andar até que tribunais internacionais começam a julgar as multinacionais envolvidas em esquemas milionários de propina.
Então, aos poucos, cada um dos integrantes da alta cúpula do dito governo começa a aparecer nas páginas policiais. Mesmo assim, nenhuma CPI, nenhuma sanha investigativa a alimentar o ímpeto denunciador de amplos setores da mídia. Ao contrário, tudo indica que o referido governo ganhará mais uma eleição em uma terra na qual ele governa há praticamente 30 anos. Ou seja, estamos aí diante do crime perfeito praticado por profissionais.
Imbuído da fé em sua resiliência, o governo resolve enfrentar uma greve, veja só, exatamente no Metrô, a empresa, tudo indica, saqueada por propinas, com uma gestão tão eficiente que construções desabam e matam periodicamente operários. Do outro lado, estão metroviários em luta por algo inaceitável, absurdo, impensável, a saber, melhores salários. Como assim, funcionários em greve por melhores salários e condições de trabalho? Por meio da força de pressão para poder negociar uma qualidade de vida melhor?
Impossível. Na verdade, eles estão, como se diz, a tornar a “população” refém de seus “interesses políticos”, a querer desestabilizar o governo ordeiro em ano eleitoral. Não, uma greve não pode atrapalhar a população trabalhadora, da mesma forma como, em 2013, uma manifestação não podia impedir a “população” de praticar seu legítimo direito de ir e vir.
Claro que há direito de greve, mas greve legal e somente aquela que ninguém sente e que, por isso, pode ficar durante meses sem conseguir algo. Greve boa é greve morta.
Os metroviários não entenderam assim, por isso o governo precisou agir com firmeza. Funcionários presos, demitidos e ameaçados de demissão. Qual o crime? Ter feito greve. Ou, se quiser, se comportado como “bandidos” por pararem a circulação da cidade a fim de mostrar ao povo suas condições precárias de trabalho e salário.
Então, nessas ironias da história, um governo prenhe de integrantes a serem acusados de bandidos por práticas reiteradas de corrupção no Metrô mostra sua mão dura contra funcionários, desse mesmo Metrô, tratados como bandidos por fazerem uma greve por melhores salários e condições de trabalho. Difícil não se imaginar em uma peça de Alfred Jarry. O título da peça poderia ser, inclusive: “Quem São os Bandidos?”
Para terminar a descrição da peça, haveria ainda o coro. Ele seria composto de cidadãos chorando por não terem conseguido trabalhar, empregados ordeiros revoltados por não poderem realizar suas obrigações laborais de forma civilizada. Gente que, repetidamente, diz não aguentar mais a instabilidade provocada por esses grevistas que confrontam a polícia e que parecem ter alguma forma de prazer perverso em inalar gás lacrimogêneo. Algum dia você ainda verá artigos a provar que esquerdistas gostam de inalar gás lacrimogêneo, porque ele provoca alucinações.
Esse é um capítulo da estranha vida em São Paulo. Muitas vezes, ela parece ser a descrição de um mundo invertido onde o pior pecado é ser pobre, não aguentar ser espoliado em seu emprego, mas ser sindicalizado. Ainda mais se for funcionário do Metrô.
Pois como o Metrô conseguirá pagar melhores salários se ele precisa ainda, ao que indicam os processos abertos nas justiças suíça e francesa, financiar campanhas eleitorais para o grupo que tem o direito de governar São Paulo como uma capitania hereditária?
Isso é não entender nada de choque de gestão e responsabilidade orçamentária. Isso é ser completamente irresponsável com o dinheiro público. Tenha certeza disso, nossos governantes nunca aceitarão tamanha chantagem.
Texto replicado deste endereço: O CARCARÁ
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