Há oito anos, no dia 26 de agosto de 2005, o furacão Katrina chegou aos EUA.
No dia 29 atingiu Nova Orleans. Desencadearia uma espiral de devastação que associou desabamentos, inundações, afogamento, fome, sede e saque.
Pretos, pobres, velhos e crianças foram as principais vítimas do desastre que custou 1.800 vidas.
Muitas poderiam ter sido poupadas se o socorro tivesse a agilidade requerida nessas horas.
O governo Bush demorou quatro dias para reagir.
O presidente republicano sequer visitou o local logo após a tragédia.
Com uma semana da passagem do Katrina, inúmeras áreas continuavam isoladas.
O abandono cuidou de eliminar muitos dos que sobreviveram à tormenta.
A palavra caos nunca esteve tão associada à ausência de governo como em Nova Orleans.
Tropas para conter saques e violência chegaram logo. Mas continuou faltando suprimentos, médicos, remédios e gente especializada em atuar em situações limite.
A popularidade de Bush vergou sob o peso dos mortos.
Não era uma guerra, não cabiam desculpas patrióticas.
Novas Orleans deixou patente a inadequação social de uma governo que se evocava um anexo dos mercados.
Em meio ao desespero, Fidel Castro ofereceu ajuda. Cuba se propôs a colocar 1.600 médicos experimentados em catástrofes para atuar em Nova Orleans.
‘Em 48 horas’, prontificou-se o governo cubano.
Bush não respondeu.
Fidel insistiu. Cuba providenciaria todo o equipamento necessário e 36 toneladas de medicamentos.
Silêncio.
Dias depois, um porta-voz da Casa Branca dispensou a oferta.
Há um ciclone de abandono e isolamento médico cujo vórtice atinge cerca de 3500 municípios brasileiros.
A demanda para atender à emergência é superior a 15 mil médicos.
As inscrições validadas pelo programa Mais Médicos resolvem 10% dessa defasagem.
Cerca de 4 mil médicos cubanos foram contratados pelo governo brasileiro para mitigar a emergência, em um acordo mediado pela Organização Pan Americana de Saúde.
Os primeiros grupos a desembarcar neste final de semana, em Recife e Salvador, receberam do conservadorismo local o mesmo tratamento seboso e deselegante endereçado por Bush a Fidel, durante o Katrina.
A exemplo do republicano, o conservadorismo brasileiro prefere ver a pobreza morrer doente a ter um médico cubano prestando assistência emergencial nas áreas mais carentes do país.
Se dependesse dos gásparis, elianes, tucanos e assemelhados o Katrina da carência médica continuaria a devastar o Brasil miserável.
Enquanto a hipocrisia conservadora pontifica elevadas razões humanistas para recusar a ajuda emergencial de Cuba.
A verdade, porém, é que o ‘Mais Médicos’ caiu na simpatia da população.
A reação foi oposta ao que pretendia a resistência corporativa ao programa.
Descaradamente elitista, o boicote criou uma referência pedagógica dos interesses em disputa neste caso.
Hoje, o ‘Mais Médicos’ conta com o apoio de 54% da população, no que diz respeito à vinda de profissionais estrangeiros.
Diante do revés, o conservadorismo acionou a sua tropa de elite.
As mesmas gargantas que vociferam contra o ‘Custo Brasil’, o salário mínimo e toda a herança de leis trabalhistas trazida do ciclo Vargas, agora discursam em defesa dos direitos e salários dos cubanos.
Alguns, os mais afoitos, já acalentam uma saia justa diplomática, diante de eventuais ‘desertores...’
Veteranas da crônica conservadora evocam Castro Alves e falam em ‘aviões negreiros’.
O degrau promete não ser o último da desfaçatez.
A má fé ideológica tem gordura para queimar.
Mas não só isso.
Há uma real dificuldade de ir além da lógica plana e rasa, fruto do comodismo cevado na ausência de debate real no jornalismo, ambiente no qual foram adestrados os vulgarizadores mencionados.
Ouvir os cubanos, por exemplo, para quê se a concorrência também não o fará?
Uma reportagem de fôlego em lugares e países onde acordos semelhantes já funcionam?
Desnecessário, pelo mesmo motivo.
Uma visita às escolas de medicina cubanas, para discutir a suspeita de baixa qualificação de que são acusados seus formandos?
Idem, ibidem.
Sonega-se aos protagonistas do acordo brasileiro qualquer possibilidade de motivação solidária, competência profissional e discernimento do seu papel no mundo, distinto dos critérios exclusivamente pecuniários que movem o corporativismo branco aqui e alhures.
Médicos, cu-ba-nos?
É mais fácil desdenha-los, como fez Bush, mesmo que isso tenha custado a chance de sobrevivência de muitas das 1800 vítimas fatais em Nova Orleans.
Fazem o mesmo os nossos ‘bushs’.
A usina plana e rasa da emissão conservadora impede que se discuta em profundidade qualquer tema. Desde problemas na esfera da saúde pública, até impasses e desafios reais da construção do socialismo no século 21, dos quais Cuba é um exemplo.
E não é preciso recorrer a Marx para aquilatar o ônus desse entorpecimento.
O economista Paul Krugman, a quem os nossos ‘bushs’ não podem acusar de ‘petismo’, escreveu, a propósito da visão republicana sobre saúde pública, algumas linhas que caem como uma luva no debate brasileiro sobre o ‘Mais Médicos’. Pergunta: quem, na indigência do nosso colunismo, seria capaz de articular um raciocínio não previsível e nuançado, como esse?
(...) “A relação médico-paciente já foi considerada especial, quase sagrada. Agora, políticos e supostos reformistas tratam o atendimento médico como se ele fosse uma transação comercial igual à compra de um carro (...) A medicina, afinal de contas, é uma área em que decisões cruciais – decisões de vida ou morte – devem ser tomadas. Para que esse arbítrio ocorra de maneira inteligente, requer-se um vasto conhecimento técnico dos profissionais do setor. Como se isso não bastasse, as escolhas dos médicos são frequentemente feitas enquanto o paciente está incapacitado, sob muito estresse ou quando a ação precisa ser imediata, sem tempo para discussões, muito menos para a pesquisa de preços.(...) É por isso que existe a ética médica. É por isso que os médicos são tradicionalmente vistos como uma categoria especial, da qual se espera um comportamento de padrão mais elevado do que a média dos demais trabalhadores. Há um motivo sobre por que assistimos a séries televisivas que retratam médicos – e não gerentes administrativos – como heróis. Sugerir que essa realidade possa ser reduzida a um simples comércio – que os médicos sejam meros “fornecedores” vendendo serviços a “consumidores” de saúde – é, com o perdão do trocadilho, uma ideia doentia. O fato de essa noção equivocada ter se tornado dominante é sinal de que há algo de muito errado não apenas nessa discussão, mas também nos valores da sociedade ... “ (Paul Krugman; NYT 22/04/2011)
Leia também, abaixo, dois textos extraídos do dossiê sobre Cuba, produzido em 2011 pelo Instituto de Estudos avançados da USP (IEA).
‘Um olhar para a saúde pública cubana’ foi escrito pelo jornalista cubano José A. de la Osa, especializado na área científica. O texto bastante informativo traça um panorama do ensino médico, da pesquisa, das descobertas e avanços técnicos na ilha, de onde provém os profissionais que agora vão trabalhar no Brasil. O preconceito conservador, sugestivamente, dispensa-se de consultar esses dados antes de proferir sentenças nutridas em ignorância e frivolidades.
“Cuba: a sociedade após meio século de mudanças, conquistas e contratempos” é outro exemplo de consistência, da qual se ressente o colunismo conservador ao criticar as dificuldades da revolução cubana. O artigo traça um panorama denso e crítico do quadro atual cubano, sem concessões à conveniência ou à visão direitista. O sociólogo Aurelio Alonso, autor do trabalho, é professor adjunto da Universidade de Havana e subdiretor da revista Casa de las Américas.
No dia 29 atingiu Nova Orleans. Desencadearia uma espiral de devastação que associou desabamentos, inundações, afogamento, fome, sede e saque.
Pretos, pobres, velhos e crianças foram as principais vítimas do desastre que custou 1.800 vidas.
Muitas poderiam ter sido poupadas se o socorro tivesse a agilidade requerida nessas horas.
O governo Bush demorou quatro dias para reagir.
O presidente republicano sequer visitou o local logo após a tragédia.
Com uma semana da passagem do Katrina, inúmeras áreas continuavam isoladas.
O abandono cuidou de eliminar muitos dos que sobreviveram à tormenta.
A palavra caos nunca esteve tão associada à ausência de governo como em Nova Orleans.
Tropas para conter saques e violência chegaram logo. Mas continuou faltando suprimentos, médicos, remédios e gente especializada em atuar em situações limite.
A popularidade de Bush vergou sob o peso dos mortos.
Não era uma guerra, não cabiam desculpas patrióticas.
Novas Orleans deixou patente a inadequação social de uma governo que se evocava um anexo dos mercados.
Em meio ao desespero, Fidel Castro ofereceu ajuda. Cuba se propôs a colocar 1.600 médicos experimentados em catástrofes para atuar em Nova Orleans.
‘Em 48 horas’, prontificou-se o governo cubano.
Bush não respondeu.
Fidel insistiu. Cuba providenciaria todo o equipamento necessário e 36 toneladas de medicamentos.
Silêncio.
Dias depois, um porta-voz da Casa Branca dispensou a oferta.
Há um ciclone de abandono e isolamento médico cujo vórtice atinge cerca de 3500 municípios brasileiros.
A demanda para atender à emergência é superior a 15 mil médicos.
As inscrições validadas pelo programa Mais Médicos resolvem 10% dessa defasagem.
Cerca de 4 mil médicos cubanos foram contratados pelo governo brasileiro para mitigar a emergência, em um acordo mediado pela Organização Pan Americana de Saúde.
Os primeiros grupos a desembarcar neste final de semana, em Recife e Salvador, receberam do conservadorismo local o mesmo tratamento seboso e deselegante endereçado por Bush a Fidel, durante o Katrina.
A exemplo do republicano, o conservadorismo brasileiro prefere ver a pobreza morrer doente a ter um médico cubano prestando assistência emergencial nas áreas mais carentes do país.
Se dependesse dos gásparis, elianes, tucanos e assemelhados o Katrina da carência médica continuaria a devastar o Brasil miserável.
Enquanto a hipocrisia conservadora pontifica elevadas razões humanistas para recusar a ajuda emergencial de Cuba.
A verdade, porém, é que o ‘Mais Médicos’ caiu na simpatia da população.
A reação foi oposta ao que pretendia a resistência corporativa ao programa.
Descaradamente elitista, o boicote criou uma referência pedagógica dos interesses em disputa neste caso.
Hoje, o ‘Mais Médicos’ conta com o apoio de 54% da população, no que diz respeito à vinda de profissionais estrangeiros.
Diante do revés, o conservadorismo acionou a sua tropa de elite.
As mesmas gargantas que vociferam contra o ‘Custo Brasil’, o salário mínimo e toda a herança de leis trabalhistas trazida do ciclo Vargas, agora discursam em defesa dos direitos e salários dos cubanos.
Alguns, os mais afoitos, já acalentam uma saia justa diplomática, diante de eventuais ‘desertores...’
Veteranas da crônica conservadora evocam Castro Alves e falam em ‘aviões negreiros’.
O degrau promete não ser o último da desfaçatez.
A má fé ideológica tem gordura para queimar.
Mas não só isso.
Há uma real dificuldade de ir além da lógica plana e rasa, fruto do comodismo cevado na ausência de debate real no jornalismo, ambiente no qual foram adestrados os vulgarizadores mencionados.
Ouvir os cubanos, por exemplo, para quê se a concorrência também não o fará?
Uma reportagem de fôlego em lugares e países onde acordos semelhantes já funcionam?
Desnecessário, pelo mesmo motivo.
Uma visita às escolas de medicina cubanas, para discutir a suspeita de baixa qualificação de que são acusados seus formandos?
Idem, ibidem.
Sonega-se aos protagonistas do acordo brasileiro qualquer possibilidade de motivação solidária, competência profissional e discernimento do seu papel no mundo, distinto dos critérios exclusivamente pecuniários que movem o corporativismo branco aqui e alhures.
Médicos, cu-ba-nos?
É mais fácil desdenha-los, como fez Bush, mesmo que isso tenha custado a chance de sobrevivência de muitas das 1800 vítimas fatais em Nova Orleans.
Fazem o mesmo os nossos ‘bushs’.
A usina plana e rasa da emissão conservadora impede que se discuta em profundidade qualquer tema. Desde problemas na esfera da saúde pública, até impasses e desafios reais da construção do socialismo no século 21, dos quais Cuba é um exemplo.
E não é preciso recorrer a Marx para aquilatar o ônus desse entorpecimento.
O economista Paul Krugman, a quem os nossos ‘bushs’ não podem acusar de ‘petismo’, escreveu, a propósito da visão republicana sobre saúde pública, algumas linhas que caem como uma luva no debate brasileiro sobre o ‘Mais Médicos’. Pergunta: quem, na indigência do nosso colunismo, seria capaz de articular um raciocínio não previsível e nuançado, como esse?
(...) “A relação médico-paciente já foi considerada especial, quase sagrada. Agora, políticos e supostos reformistas tratam o atendimento médico como se ele fosse uma transação comercial igual à compra de um carro (...) A medicina, afinal de contas, é uma área em que decisões cruciais – decisões de vida ou morte – devem ser tomadas. Para que esse arbítrio ocorra de maneira inteligente, requer-se um vasto conhecimento técnico dos profissionais do setor. Como se isso não bastasse, as escolhas dos médicos são frequentemente feitas enquanto o paciente está incapacitado, sob muito estresse ou quando a ação precisa ser imediata, sem tempo para discussões, muito menos para a pesquisa de preços.(...) É por isso que existe a ética médica. É por isso que os médicos são tradicionalmente vistos como uma categoria especial, da qual se espera um comportamento de padrão mais elevado do que a média dos demais trabalhadores. Há um motivo sobre por que assistimos a séries televisivas que retratam médicos – e não gerentes administrativos – como heróis. Sugerir que essa realidade possa ser reduzida a um simples comércio – que os médicos sejam meros “fornecedores” vendendo serviços a “consumidores” de saúde – é, com o perdão do trocadilho, uma ideia doentia. O fato de essa noção equivocada ter se tornado dominante é sinal de que há algo de muito errado não apenas nessa discussão, mas também nos valores da sociedade ... “ (Paul Krugman; NYT 22/04/2011)
Leia também, abaixo, dois textos extraídos do dossiê sobre Cuba, produzido em 2011 pelo Instituto de Estudos avançados da USP (IEA).
‘Um olhar para a saúde pública cubana’ foi escrito pelo jornalista cubano José A. de la Osa, especializado na área científica. O texto bastante informativo traça um panorama do ensino médico, da pesquisa, das descobertas e avanços técnicos na ilha, de onde provém os profissionais que agora vão trabalhar no Brasil. O preconceito conservador, sugestivamente, dispensa-se de consultar esses dados antes de proferir sentenças nutridas em ignorância e frivolidades.
“Cuba: a sociedade após meio século de mudanças, conquistas e contratempos” é outro exemplo de consistência, da qual se ressente o colunismo conservador ao criticar as dificuldades da revolução cubana. O artigo traça um panorama denso e crítico do quadro atual cubano, sem concessões à conveniência ou à visão direitista. O sociólogo Aurelio Alonso, autor do trabalho, é professor adjunto da Universidade de Havana e subdiretor da revista Casa de las Américas.
Postado por Saul Leblon às 04:02
Texto replicado: CARTA MAIOR
Olá, tudo bem? Eu sou a favor do projeto, mas sou contra o envio do salário do médico cubano para o regime castrista... Abraços, Fabio www.fabiotv.zip.net
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