terça-feira, 8 de abril de 2025

Armaria, caba da peste!

 

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“Eita! Sertão do Nordeste/ Terra de cabra da peste/ Só sertanejo arrizeste.” E não é? Assim contava Luiz Gonzaga, na canção ‘Cabra da peste’, de 1955. Aí a gente percebe que ‘arrizeste’ é mais gostoso de falar do que ‘resiste’ e ‘cabra da peste’ expressa muito mais que ‘homem valoroso’.
Segundo estatísticas dalgum lugar, não há nordestino que não fale de vez em quando ‘cabra’ em vez de ‘homem’; e 93,52% da população do Nordeste já xingou ou elogiou alguém chamando-o de ‘cabra da peste’.
Isto mesmo: xingar ou elogiar. Eis uma locução que assume sentidos opostos a depender do contexto. O cabra da peste pode ser um sujeito mau, temido pela sua crueldade ou um sujeito bom, admirado por sua coragem ou outra qualidade. Nos dois casos, o cabra é sempre valente.
Agora, donde veio essa história de chamar um sujeito homem de ‘cabra’? É curioso, pois, em espanhol, ‘cabra’ pode ser uma moça e ‘cabro’, um moço. Em catalão, ‘cabra’ é um homem traído pela esposa – o mesmo que observamos no espanhol ‘cabrón’ e no português ‘cabrão’.
No Brasil, ‘cabra’, no entanto, tem valores positivos atribuídos a um homem desde pelo menos o século XVIII. No sertão do Nordeste brasileiro, a criação de bodes e cabras (caprinocultura) se desenvolveu muito mais do que a do gado bovino, pois a cabra sempre foi um animal resistente, adaptado ao semiárido, conseguindo sobreviver com pouca água e se alimentando de arbustos espinhosos e folhas secas.
Pois bem... Estando o nordestino muito acostumado às cabras, não foi difícil tirar delas alguma qualidade atribuível aos humanos. O lexicógrafo carioca Antônio de Morais Silva, registrou assim no seu ‘Diccionario da lingua portugueza’, de 1789: “CABRA, [...] O filho, ou filha de pái mulato, e mái preta, ou as avessas”.
O historiador Paulino Nogueira, que foi presidente interino da Província do Ceará, em 1878, assim explicou: “‘Cabra’, entre nós, é o producto do cruzamento do mulato com a preta, e vice-versa. Dá uma raça da cór de azeitona, altura regular, musculosa, forte e topetuda, de máos bofes [agressiva] e atrevida. Era della que tiravam os antigos potentados [poderosos] seus melhores ‘cangaceiros’, ‘peitos-largos’ [capangas]. ‘Cabra’ é tambem, entre o povo, synonimo de forte, destemido, valente: neste sentido é elogio.”
Com o tempo, a metáfora de ‘cabra’, passou de ‘homem mestiço, da pela mais clara’, para ‘homem valente’ e, depois, simplesmente ‘homem’. Por isso, muitos tipos de ‘cabra’ foram cunhados para qualificar o indivíduo. Vários dicionários nordestinos, novos e antigos. assim explicam:
✅ ‘cabra de peia’: o que não reage a castigos físicos; o moleirão; o sem compostura;
✅ ‘cabra safado’: o desprezível;
✅ ‘cabra laranja’: mulato sarará;
✅ ‘cabra frouxo’ ou ‘cabra mofino’: o covarde;
✅ ‘cabra besta’: o imbecil, orgulhoso sem motivo;
✅ ‘cabra mole’: o preguiçoso;
✅ ‘cabra escolado’ ou ‘cabra escovado’ (rsrs): o experiente e sabido;
✅ ‘cabra da rede rasgada’: o grosseiro e desbocado;
✅ ‘cabra de assombração’: o que, por acreditar que tem proteção sobrenatural, não teme o perigo;
✅ ‘cabra de chifre’: o cangaceiro;
✅ ‘cabra às direitas’: o decente;
✅ ‘cabra velho’: mestiço velho;
✅ ‘cabra do colhão roxo’: o que é muito destemido;
✅ ‘cabra-sarado’: o astuto.
De todos os cabras, o que se destaca é o cabra corajoso, decidido e valente e, para ele, há vários epítetos caprinos: ‘cabra-macho’, ‘cabra-onça’, ‘cabra-feio’, ‘cabra-seco’, ‘cabra-topetudo’. Os termos mais utilizados, curiosamente, são os relativos a doenças: ‘cabra da peste’, ‘cabra da moléstia’ e ‘cabra da gota-serena’. ‘Peste’ é o termo que se usa para qualquer mal contagioso ou outras doença graves; ‘moléstia’ é um dos nomes populares da raiva; ‘gota-serena’ é um tipo de perda parcial ou total da visão.
A ideia é que o ‘cabra da peste’ era temido e evitado tal qual uma doença contagiosa. A braveza do sujeito ruim, num contexto de briga ou de guerra, acabava sendo uma qualidade; ele se tornava o ‘cabra bom da peste’.
Olha que, para ser cabra da peste, não é qualquer um que consegue, viu. É aí que eu fico com Falcão e Zé Ramalho, que na música ‘Guerra de facão’ (1997) já alertam: “Tá chegando o fim das épocas, vai pegar fogo no mundo,/ e o pior, que os vagabundos tocam música estrangeira/ em vez de aproveitar o que é da gente do Nordeste./ Vou chamar de mentiroso quem dizer que é cabra da peste.”
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📚 Referências: ‘Presidentes do Ceará’, por Paulino Nogueira, na ‘Revista trimensal do Instituto do Ceará’ (1896); e ‘Votos e ex-votos: aspectos da vida social do Nordeste’, por Mauro Mota (1968).
🖼️ Figura: Cabras da Peste/Facebook (fev. 2016).
🗣️ Sugestão: Bruno Maroneze.

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