por Rafael de Araújo Gomes* — publicado 21/06/2018 14h00, última modificação 21/06/2018 10h41
Não deveria o Cade vetar operações que causam prejuízo à concorrência? Não o faz graças à figura das 'eficiências econômicas'
Cade propõe a eliminação dos frentistas, o que acabaria com mais de meio milhão de empregos |
No dia 29 de maio, em meio à greve dos caminhoneiros, o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) lançou um estudo chamado “Repensando o setor de combustíveis: medidas pró-concorrência”. Entre as propostas do estudo, destinadas a “melhorar o mercado”, constou a seguinte: “permitir postos autosserviços”.
Segundo o Cade, “este sistema tende a reduzir custos com encargos trabalhistas com consequente redução do preço final ao consumidor”, e “a existência de uma forma mais eficiente do ponto de vista econômico... não pode ser barrada apenas porque desagrada alguns setores específicos da sociedade, em detrimento do bem-estar geral da sociedade”.
Em outras palavras, o que está propondo o Cade é a eliminação dos frentistas dos postos, medida que poderia acabar em definitivo com mais de meio milhão de empregos em todo o País.
O estudo não fala dos impactos econômicos negativos à sociedade em se lançar tantos trabalhadores no desemprego. Não ocorreu ao Cade que a medida, em um país já afligido pelo desemprego (segundo o IBGE, falta atualmente trabalho para 27,7 milhões de brasileiros), poderia causar perda de “bem-estar geral da sociedade”, ou que tal sacrifício seria criado para permitir redução ínfima do preço do combustível (pois menos de 9% do preço corresponde aos custos e lucro dos postos), isso se de fato fosse repassada ao consumidor.
A omissão é indesculpável, pois há farta produção da ciência econômica sobre os custos econômicos e sociais do desemprego (por exemplo, Till von Wachter e Daniel Sullivan demonstraram, em 2009, que o desemprego duradouro reduz em 18 meses a expectativa de vida do ser humano).
Como os frentistas recebem salários baixos, é certo que suas famílias consomem em bens e serviços quase todo o dinheiro recebido, possuindo poucas condições de poupar ou investir. Tudo o que recebem retorna ao mercado, sob a forma de consumo, movimentando a economia.
Para simplificar, imaginemos que cada frentista gaste, com habitação, alimentação, vestuário, etc., um salário mínimo por mês. Só aí teríamos no setor quase meio bilhão de reais em salários retornando todo mês à economia. Imagine o impacto que seria sentido pelas empresas com a perda de todos esses consumidores.
A proposta, entretanto, é coerente com o pensamento que prevalece no Cade, e que pode ser assim resumido: os efeitos negativos de medidas que impactem o trabalho são irrelevantes. A proposta é só mais um exemplo da lógica que inspira o Cade há anos.
Vejamos o comportamento do Cade diante de uma de suas principais responsabilidades, que é a análise de atos de concentração (fusões, aquisições, etc.).
Graças ao Cade, hoje no Brasil apenas quatro bancos concentram quase 80% das operações de crédito, e as empresas e os consumidores sofrem as consequências desse oligopólio. Também graças ao Cade, apenas três empresas controlam mais de 80% do comércio mundial de suco de laranja, e os pequenos e médios produtores sofrem as consequências.
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Como isso é possível? Não deveria o Cade vetar operações que causam prejuízo à concorrência? Sim, isso é o que ele deveria fazer, mas não faz, graças à figura das “eficiências econômicas” ou “eficiências específicas”.
Ao analisar atos de concentração, o Cade aprova operações, mesmo tendo apurado que elas irão restringir a concorrência, desde que supostas “eficiências econômicas” compensem o prejuízo. A ideia é que o benefício à sociedade com tais “eficiências” compensaria o dano.
Entre essas “eficiências” está, de acordo com o “Guia Para Análise Econômica de Atos de Concentração Horizontal” (documento oficial do Cade), as “economias de escala” proporcionadas pela “redução nos custos fixos e variáveis”, inclusive custos trabalhistas. Quanto mais as empresas prometerem ganhar pela redução desses custos, mais pontos a operação recebe, e maiores as chances de aprovação.
Redução de custos trabalhistas significa, na prática, demissões. O que o Guia do Cade faz, então, é incentivar as empresas a demitir o maior número de empregados possível, pois quanto maior a redução de custo planejada, maiores as chances de aprovação.
Tal Guia é efetivamente aplicado, na prática, mas isso é mantido em segredo. A informação consta em autos de acesso restrito, que só as empresas podem ler, e não na versão pública do processo.
Graças a uma ação judicial o Ministério Público do Trabalho obteve acesso à íntegra da decisão do Cade que aprovou a fusão da Citrovita e Citrosuco, tendo consolidado o oligopólio no setor da laranja. Apenas nos autos restritos descobre-se que a operação só não recebeu mais pontos para aprovação (que apesar disso ocorreu) porque as empresas não prometiam demitir de imediato:
“Recursos Humanos – Dimensionamento das equipes – Não são confirmadas eficiências para os dois primeiros anos – Valor apresentado – R$ 16 milhões; valor aceito R$ 0 milhões”; “O primeiro critério a ser avaliado foi a temporalidade da geração das eficiências. A maioria das eficiências descartadas possuía estimativa de geração de eficiências com prazo superior a 2 anos”.
Ou seja, as empresas prometeram economizar 16 milhões de reais com “dimensionamento das equipes”, leia-se demissão em massa, e tal promessa só não rendeu pontos porque as dispensas ocorreriam após 2 anos da aprovação da fusão, e não desde já, como preferia o Cade.
O irônico é que, após a aprovação, Citrovita/Citrosuco logo fecharam fábricas e demitiram centenas de trabalhadores, não tendo aguardado dois anos para isso.
Para o Cade, quanto mais demissões ocorrerem em uma fusão ou aquisição, mais “eficiente” e recomendável será o negócio. Pode-se ver que a valorização do trabalho humano e a função social da propriedade, previstos na Constituição Federal ao lado da livre iniciativa e da livre concorrência, são pelo órgão desconhecidos.
Constata-se que o Cade, que tem falhado em sua principal tarefa, que é impedir o surgimento de monopólios e oligopólios, desenvolve uma guerra particular contra os empregos no Brasil, por acreditar que demissões proporcionam “eficiência econômica” às empresas e devem ser encorajadas. Sua posição está em confronto com os anseios da sociedade brasileira, e com a política pública de combate ao desemprego.
*É procurador do trabalho e coordenador do Grupo de Trabalho Instrumentos Econômicos e de Governança do Ministério Público do Trabalho
Texto original: CARTA CAPITAL
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