Imagem: Cidade de Deus/Divulgação
No dia 12 de maio de 2018 uma policial militar reagiu a um assalto que culminou na morte de um ladrão. O assaltante pretendeu efetuar o crime em frente à uma escola, e com arma em punho colocou em risco a vida de crianças que estavam de saída. Não sabemos quais as consequências da tentativa do criminoso se a policial militar não tivesse reagido daquela forma, não sabemos se o rapaz iria efetuar um disparo em alguém, mas sabemos que em um ato de legítima defesa foi possível evitar uma tragédia maior.
Digo tragédia maior porque qualquer pessoa que valorize a dignidade da pessoa humana, independente de quem seja, não contempla o assassinato de um infrator como o suprassumo da justiça.
Não se trata aqui de afirmar que a policial militar errou em sua atitude, mas sim que o reconhecimento do seu feito por parte da grande imprensa e parcela considerável da sociedade brasileira foi justamente pelo individuo morto e não pelas vidas que, em um ato de coragem, não tiveram um destino nefasto. As manchetes jornalísticas bradaram o feito salientando mais a morte do que a vida, e as manifestações nas redes sociais demonstraram o deleite pelo sangue escorrido. Portanto, o caso em questão nos remete a pensar nos “efeitos” que produziu, em especial no que tange o debate sobre a violência do crime, sobre a justiça e os direitos humanos.
Tais revelações sugerem que temos muito o que refletir sobre quem comete crimes no Brasil, a origem dessa criminalidade e os possíveis caminhos para sua superação. Indubitavelmente, se faz necessário evitar os raciocínios fáceis, tanto para explicar o “porquê” dos crimes, quanto para sugerir sua solução.
Segundo dados de 2014 disponibilizados pelo Sistema Integrado de Informação Penitenciária (INFOPEN), o perfil dos cidadãos privados da liberdade no Brasil demonstra que a etnia, escolaridade e renda têm um potencial explicativo maior sobre a gênese da criminalidade do que a culpabilização descontextualizada e individual.
Portanto, o discurso de que o criminoso faz isso por ser a personificação da malignidade ou porque embora tenha tido todas as oportunidades do mundo preferiu o “caminho mais fácil” não procede – como se um caminho fácil fosse tornar-se um assaltante. Se fosse isso, porque o espírito maligno seria manifestado majoritariamente por gente pobre, negra e que passou a infância em péssimas condições de educação, saúde, higiene, moradia e num contexto familiar geralmente desestruturado?
O falso argumento da criminalidade como essência humana esconde a chave da fechadura para a compreensão deste fenômeno: a desigualdade social. Padecemos com a violência produzida pelo crime em grande parte porque não nos damos conta de que há pessoas que não tiveram as mesmas condições de vida que aquele rapaz que, desde a tenra idade, estudou em escola de qualidade, teve três refeições ou mais por dia, foi orientado por responsáveis com condições para propiciar uma educação digna, enfim, nos esquecemos que as condições de desenvolvimento humano, dada as gritantes desigualdades sociais no Brasil, são dramaticamente desiguais.
Por exemplo, não há como esperar que um jovem negro morador de uma favela carioca tenha a mesma desenvoltura escolar ou as mesmas condições de inclusão no mercado de trabalho que um jovem filho da elite empresarial paulistana. O origem social desigual produz uma diferença em termos de acesso à oportunidades, que cria perspectivas de existência distintas para essas pessoas, expectativas visualizadas muitas vezes como naturais. Daí ocorre do mundo do crime se apresentar como o único percurso possível de quem nunca possuiu as condições efetivas para a superação desse destino.Ninguém nasce ladrão, torna-se ladrão. Se torna porquê, em grande medida, está submetido às condições abissais da desigualdade social.
E para não cometermos o mesmo erro, qual seja, uma interpretação imprecisa dos fenômenos, devemos compreender as condições sociais que produz o julgamento equivocado da origem da criminalidade.
É certo que estamos cercados por um aparelhamento ideológico que ratifica a posição do criminoso como ente consciente de seus atos, e isso é estratégico, pois é necessário incutir uma representação de mundo onde se encaixe a plena vida de quem não precisa suportar a amargura de um destino ceifado pela desigualdade.
O grupo dominante deseja a manutenção da conjuntura social para que seus privilégios não sejam ameaçados, e para isso detêm o controle da imprensa, da política, da economia, da religião e da educação, veiculando uma “mensagem” com sentido único, arquitetada nestes diferentes meios, que propicia uma sacralização das relações sociais cuja qualquer presunção de mudança é sucumbida pelas convicções anestesiantes ou demonizada, como se vê no Brasil hoje em dia, pelo avanço de frentes abertamente reacionárias.
Esta mensagem faz com que as pessoas acreditem piamente que a sua situação no mundo depende exclusivamente do seu esforço, e é por isso que o conceito de meritocracia é tido como o núcleo explicativo de qualquer situação social, a despeito de toda a dinâmica que estabelece uma disposição irremediável de acesso às oportunidades.
Neste sentido, a morte de criminosos pode ser entendida como um efeito paliativo, pois não rompe com a origem social da criminalidade, e portanto, com esse tipo de violência. O assassinato, o linchamento ou o espancamento de assaltantes é produto de um sentimento imediatista que desconsidera as condições de vida de um criminoso e o motivo de suas ações. Desconsidera, ainda, que o criminoso é o fruto da desigualdade social a qual a maioria das pessoas estão submetidas, umas mais que as outras.
Deste modo, a famosa afirmação de que “bandido bom é bandido morto” é um desejo de vingança mal fundamentado, pois trata-se de uma proposta de solução que não considera as raízes fundantes da criminalidade, que viola a dignidade humana e que não traria, efetivamente, o fim do problema.
Afinal, o que queremos? O assaltante morto ou que uma pessoa não se torne um assaltante?
O escopo dos direitos humanos corrobora a segunda proposta, isto é, que se assuma a responsabilidade da existência de condições deletérias à vida humana que produz a criminalidade e a violência, e que se crie meios para transcender tal panorama e evitar que vidas sejam ceifadas, seja de um criminoso ou não. Portanto, na verdade, quem defende bandido é quem deseja sua eterna existência no mundo, que ao invés de aclamar a superação de uma sociedade desigual, prefere a lei de talião.
O problema se apresenta ainda mais complexo quando o desfecho que tivemos na ação da policial militar é premiado pelo Estado. Os aplausos aqui não são portanto apenas de parcela da sociedade que não compreende a origem da criminalidade, mas também de seus representantes que ratificam o tipo ação. As próprias policias também parecem estar em simbiose com o recrudescimento do espírito fascista no Brasil ao entender o assassinato de um criminoso como a “eliminação do inimigo” e a defesa do “cidadão de bem”, fruto da formação militar dos agentes e do apoio popular à violência contra quem viola a lei. Não é incomum que essas instituições tenham como emblema uma caveira ou algo que simbolize a morte.
Um policial, ao contrário de um soldado, deve compreender sua atuação em sociedade de modo a evitar a violência – e não agir por meio dela, como naturalmente ocorre em conflitos armados. O policial não se deve entender como um combatente, pois não está agindo em uma batalha num campo de guerra, mas sim em espaços urbanos ou rurais onde vivem cidadãos.
A título de exemplo, no Canadá, no dia 23 de abril de 2018, um policial conseguiu render, sem efetuar nenhum disparo, um rapaz que assassinou dez pessoas e feriu outras quinze num ato de ódio, e perguntamo-nos o que as pessoas que apoiaram a morte do bandido pela policial militar devem pensar sobre este caso. De todo modo, não há motivo para homenagens quando alguém morre, ou pelo menos não deveria haver, a não ser que a estratégia seja eleitoreira e vise conseguir o apoio da opinião pública mesmo que isso expresse o que há de mais cruel.
Paulo Freire nos disse que ser alfabetizado não é apenas deter as condições fundamentais para a decodificação de símbolos, é mais do que isso, para ele, quem é alfabetizado deve possuir as condições de leitura da realidade, para vislumbrar suas contradições e as estruturas da desigualdade e da desumanização. Para isso, devemos superar a falsa consciência, evitar a mistificação que naturaliza o mundo e agir para a sua transformação. Nessa perspectiva, abordar nas escolas os reais motivos da existência da criminalidade e da violência pode nos ajudar a promover a cidadania e evitar a bestialidade como solução das aflições sociais.
Vitor Hugo Rinaldini Guidotti é Mestre em Sociologia pela Universidade Federal da Grande Dourados (PPGS-UFGD), graduado em Administração pela Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS), graduado em Pedagogia pelo Centro Universitário da Grande Dourados (UNIGRAN) e acadêmico do curso de Sociologia pela Universidade Paulista (UNIP).
Texto original: JUSTIFICANDO
Nenhum comentário:
Postar um comentário