Os ricos não se enxergam, os pobres não enxergam e o País, patético e demente, desmorona
Como Bottom, ele também acordou do sonho |
Lévy-Strauss, que em São Paulo lecionou na Universidade recém-fundada e sobre o Brasil escreveu seu magistral Tristes Trópicosem 1954, dizia dos senhores paulistanos: “Eles se acham muito civilizados e não sabem como são típicos”.
Referia-se a um grupelho de cavalheiros enchapelados que enxergavam em Paris o umbigo do mundo. Valeria também dizer, então e sempre: são da Idade Média e se acham modernos, embora, hoje, em lugar de Paris, prefiram Miami e adjacências. O Brasil vive a ficção que a minoria cria em seu proveito, enquanto a maioria não sai do limbo.
O homem precisou inventar o tempo e o espaço para se situar no Universo. Os privilegiados do Brasil vão muito além, inventam um país e uma nação ao sabor de uma história de pura fantasia, que nem é, no nosso especialíssimo caso, aquela escrita pelos vencedores.
Pergunto aos meus enfadados botões: é possível, digamos, que ainda haja no Brasil do estado de exceção quem constantemente evoque a dicotomia esquerda-direita, inclusive muitos pretensos jornalistas, como se estas posições ideológicas pudessem ser professadas pelas nossas bandas?
Representantes da direita do porte de Churchill, De Gaulle, Adenauer, De Gasperi, e poderia citar muitos outros, nunca cogitaram de golpes de Estado, e tampouco cogitam direitistas hidrófobos como Marine Le Pen ou Matteo Salvini, em busca de poder constitucional.
Golpe é para Hitler, Mussolini, Franco, e daí por diante ao descer pelos galhos inferiores. Dizer de direita os golpistas de 2016 é punhalada nas costas de qualquer cidadão digno, democrático porque igualitário.
Quanto à esquerda, também nesta área cabem muitas dúvidas. Nem se fale de todos aqueles que se apresentaram como esquerdistas, há tempo em debandada aos magotes. Ousemos, contudo: o PT no poder foi partido de esquerda?
Foi capaz, sob Lula, de medidas sociais e modernizadoras importantes e de uma política exterior de total independência em relação aos interesses de Washington, mas amiúde não cuidou dos seus próprios e até favoreceu, de muitos pontos de vista, a casa-grande e seus porta-vozes da mídia nativa, a começar pela Globo.
E, sobretudo, não soube, ou não quis, despertar a consciência de povo mesmo quando o beneficiava. O PT não escondeu a crença na conciliação das elites, como se algum dia pudesse transpor aos umbrais do Jardim do Éden, perdão, da casa-grande.
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Há esquerdistas autênticos no partido, mas isolados, e esquerdistas são, obviamente, figuras como João Pedro Stedile e Guilherme Boulos. Raros, porém, os autênticos, conscientes até a medula. Intermináveis, entretanto, os que se agarram às injunções da “correlação de forças”.
Temível é quem sai da esquerda e acaba à direita. Figura simbólica é Carlos Lacerda, aquele que o Estadão queria na Presidência do Brasil, se necessário por meio de um golpe. Este se deu, o de 1964, e Lacerda, de fuzil em punho, ficou a ver navios.
Mais tarde acabaria cassado pelos generais que apoiara, por ter-se unido a Jango Goulart e Juscelino Kubitschek na chamada Frente Ampla, com o condão de precipitar uma censura branda no jornalão dos senhores Mesquita, logo perdoados por seu inextinguível apoio ao ex-governador ao celebrarem o centenário do Estadão.
Tanto mais perigoso, Lacerda, porque excelente na fala e bom na escrita. Aproximou-se com uma carta, quando eu dirigia a Quatro Rodas, para elogiar a qualidade da revista. Encontrei-o várias vezes, a última ocorreu na segunda metade de 1976.
Ligou para a IstoÉ, fundada fazia poucos meses como mensal, e convidou-me para jantar. À mesa me surpreendeu com uma conversa a me lembrar de improviso a fala de Nick Bottom, ao acordar do sonho de uma noite de verão.
O tecelão chamado à ribalta por Shakespeare surge do devaneio e pergunta: “Quem eu acreditava ser? Que acreditava querer?” Lacerda não pedia perdão, mas entendia, supus sinceramente, ter falhado na aposta em boa-fé. Na ocasião, os botões não se habilitaram a me esclarecer. Ele morreria pouco depois, como Jango e JK.
Este país monstruosamente desigual, onde apenas 1% da população ganha acima de 26 mil reais por mês, onde a chamada elite conta com uma equipe de titulares ricos e super-ricos, e com outra de aspirantes empenhados em chegar a tanto, não tem a mais pálida condição de enxergar a si mesmo, enquanto alguns manobram em voos circulares arriscados um cálice que chamam de taça, na patética tentativa de parecerem o oposto do que são.
Quanto à taça, em qualquer outro país acostumado a lidar com vinho chama-se copo.
Texto original: CARTA CAPITAL
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