terça-feira, 27 de março de 2018

Fraudes e descaso estatal ameaçam inclusão dos negros na universidade

por Victória Damasceno — publicado 26/03/2018 00h10, última modificação 26/03/2018 10h08

Corte e falta de reajuste das bolsas comprometem a permanência de estudantes cotistas no ensino superior

O Brasil adotou as primeiras ações afirmativas nos anos 2000, quatro décadas depois que os Estados Unidos
Último país das Américas a abolir a escravidão, o Brasil tardou a se preocupar com o acesso dos negros ao Ensino Superior, de forma a reduzir as abissais desigualdades perpetuadas no mercado de trabalho. As universidades brasileiras começaram a reservar vagas para pretos, pardos e indígenas somente no início dos anos 2000, mais de quatro décadas depois das primeiras ações afirmativas nos EUA.
Ainda que tardia, a iniciativa mudou a paisagem nos campi. Em 2012, ano de promulgação da Lei de Cotas, 17% dos alunos de graduação em instituições públicas declaravam-se negros. Em 2016, eles eram 34% do total, segundo a Sinopse Estatística da Educação Superior, do Inep. O inegável avanço está, porém, ameaçado pela falta de ética de grupos historicamente privilegiados e pelo descaso do poder público com a assistência estudantil, indispensável para garantir a permanência dos mais pobres.

Embora a Lei de Cotas contemple apenas universidades federais, a pioneira foi a Universidade do Estado do Rio de Janeiro, que desde 2003 reserva vagas para negros e estudantes de baixa renda. Um ano depois, a Universidade de Brasília seguiu a tendência e se tornou a primeira federal a adotar o sistema. Quatro anos depois, a política de inclusão sofreria um revés, com uma escandalosa fraude no processo seletivo.

Dois irmãos gêmeos, idênticos e de pele clara, disputaram o vestibular da UnB, mas somente um deles se declarou negro. O episódio levou a instituição a rever a decisão de confiar cegamente na autodeclaração dos candidatos. A despeito do longo passado escravocrata do País, uma parcela da população branca não hesita em burlar as regras para reafirmar seus privilégios. 

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Sancionada por Dilma Rousseff, a Lei nº 12.711/12 reserva 50% das vagas de graduação das universidades e institutos federais, de todos os cursos e turnos, para alunos com renda familiar per capita inferior a um salário mínimo e meio. Dentro desse percentual há uma destinação específica para pretos, pardos e indígenas, na mesma proporção desses grupos no estado em que a instituição de ensino está instalada. Nos últimos anos, ao menos um terço das universidades federais viu-se forçado, no entanto, a investigar fraudes nesse sistema.

O documento de autodeclaração, no qual o candidato se reconhece como preto ou pardo, revelou-se incapaz de garantir a transparência nos processos seletivos. Da mesma forma, a exigência de envio de fotos tornou-se pouco efetiva diante da criatividade dos fraudadores, dispostos a manipular as imagens por computador, escurecer a pele com bronzeamento artificial e até mesmo falsear penteados para simular o pertencimento ao público-alvo. Diante da multiplicação de casos de fraude, muitas universidades criaram “bancas de verificação”, responsáveis por fazer entrevistas presenciais com os cotistas antes da matrícula.

Integrada por servidores, professores e ativistas do Movimento Negro, essas comissões de validação analisam o perfil fenotípico dos estudantes, isto é, a sua aparência física, incluída a cor da pele, os contornos do rosto, a estrutura de cabelo.

Em apenas três universidades, as federais do Rio Grande do Sul, do Paraná e a Fluminense, 433 inscritos foram desclassificados pelas bancas por falsear a declaração racial. Nem mesmo essa solução, que obriga os candidatos a comparecer diante de uma banca para provar o seu perfil étnico, está imune a controvérsias, por vezes resolvidas nos tribunais.

Com a bolsa cortada, Wellington Lopes teme não ter condições de concluir o curso (Samir Queiroz Haddad)
Uma das candidatas reprovadas pela banca de validação da UFPR foi Dayan Kelly de Carvalho, hoje aluna do curso de medicina da universidade. Com pele clara e cabelos lisos, a estudante teve a matrícula negada por não possuir “o conjunto de características do indivíduo, predominantemente a cor da pele, a textura do cabelo e o formato do rosto”, que permitem acolher ou rejeitar a autodeclaração.

Reprovada, a jovem recorreu a um recurso administrativo e relatou em texto os motivos pelos quais se identifica com o perfil étnico.

De acordo com Dayan, o cabelo liso é decorrente do uso de “produtos de beleza utilizados para este fim”. Considera-se parda, pois seu pai tem pele “mais escura”, embora a mãe seja caucasiana. O recurso, amparado por fotos de infância e da família, foi aceito pela universidade. Com a mudança de entendimento, outra aluna perdeu, porém, a vaga prometida.

Com a pele negra e cabelo cacheado, Suellen Queiroz chegou a ser convocada para assumir o lugar de Dayan no curso de medicina. Ao comparecer na universidade, recebeu a notícia de que a candidata reprovada possuía um recurso pendente.

Em razão disso, não pôde concluir a matrícula. “Não vi apenas a minha vaga desaparecer, vi a corrupção de uma ação afirmativa”, protesta. Na avaliação da estudante, não basta o cotista se identificar com um grupo étnico, é preciso haver “reconhecimento social” dessa condição. “Esta é uma política antirracista, que visa a representatividade da população negra no ambiente acadêmico. Dentro da universidade, ela não será socialmente vista como negra, mas como branca.” 

Inconformada com o desfecho da história, Suellen recorreu à Justiça, pleiteando o direito de assumir a vaga. O caso segue sub judice. Por meio de nota, a defesa de Dayan de Carvalho afirma que a estudante “sempre se autoidentificou como parda e, não à toa, teve a sua autodeclaração validada pela Banca Avaliadora Recursal da UFPR”.

O advogado Marcus Vinícius Siqueira Gomes enfatiza que a comissão responsável pela análise do recurso era qualificada, integrada por pessoas ligadas ao Movimento Negro e aos direitos humanos. E acrescenta que a sua cliente jamais anexou fotos “com edição” para ludibriar o sistema de cotas.

Nesse mesmo processo seletivo, dos 158 estudantes reprovados pela banca, 116 recorreram e 57 tiveram sua candidatura deferida nas instâncias administrativas da universidade. A socióloga Marcilene Garcia de Souza, professora do Instituto Federal da Bahia, participou da banca de validação da UFPR quando a política foi instituída, em 2005.



Para ela, as origens do candidato não devem ser levadas em consideração, pois o fenótipo é a característica principal do racismo brasileiro. “Se um negro entra em um shopping e um segurança o persegue, ele está sendo vigiado por qual pressuposto? Pelo traço corporal, pela sua cor.” A professora vê a autodeclaração como um direito constitucional, mas considera um dever do Estado combater fraudes. “A fiscalização deve estar presente no processo.”

Segundo o IBGE, brancos possuem maior escolaridade em todos os níveis de instrução, mas o tom da pele acentua ainda mais as diferenças nas universidades. Em 2012, 5,6% da população negra havia concluído o Ensino Superior, em comparação a 16,1% dos brancos. Apesar da inclusão nos últimos anos, a distância permanece grande. Em 2016, 7,5% dos pretos e pardos haviam concluído um curso universitário, enquanto um quinto dos brancos (exatos 20%) eram graduados. Não bastasse, o mercado de trabalho remunera melhor quem tem pele clara, independentemente do grau de formação (gráfico acima). 

A permanência dos cotistas no Ensino Superior também está ameaçada. Para os estudantes de baixa renda, as universidades públicas oferecem auxílio financeiro para cobrir gastos com moradia, alimentação e transporte, algo entre 400 e 600 reais.

Além de o valor ser inferior a um salário mínimo, hoje estabelecido em 954 reais, os recursos destinados pelo governo federal ao Plano Nacional de Assistência Estudantil, o Pnaes, estão congelados há três anos. Na verdade, o orçamento reservado para 2018, de 957,2 milhões de reais, é 3,55% inferior ao do ano anterior.

As bolsas são destinadas a alunos com renda familiar per capita de até um salário mínimo e meio. Segundo uma pesquisa da Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais (Andifes), 44% dos alunos tinham esse perfil de renda em 2010. Quatro anos mais tarde, eram dois terços (66%). Com as políticas de ação afirmativa, a tendência é aumentar a participação.

Emmanuel Tourinho, reitor da Universidade Federal do Pará e presidente da Andifes, diz que a verba reservada para as bolsas em 2018 é a mesma do ano anterior, o que impede reajustes nos valores ou a ampliação do número de beneficiários. Não bastasse, os recursos para construir restaurantes universitários e residências estudantis foram cortados integralmente. “Esses espaços são essenciais para garantir a permanência, mas não há dinheiro para concluir obra alguma.”

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Cotista na Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul, o estudante Wellington Lopes é um dos atingidos pelos cortes orçamentários. No último ano da graduação em Ciências Sociais, o jovem teme não conseguir terminar o curso.

Ele recebia 400 reais mensais do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência (Pibid), do governo federal, interrompido no início deste ano. A bolsa custeava a alimentação e o aluguel, “vivendo bem apertado”. Agora, pretende sobreviver de “bicos” e pedirá aos pais para enviar 50 reais por mês para ajudar nas despesas. “Os cortes nas políticas públicas atacam diretamente a nós, estudantes pretos. Nós é que sentimos a carga mais pesada.”

Antes de conseguir a bolsa, Lopes recebeu apoio financeiro da Uneafro, rede de educação popular voltada para jovens negros. Para o frei franciscano David Santos, diretor Educafro, entidade educacional também voltada a população negra, a política de cotas está seriamente ameaçada. “O País erra cruelmente no planejamento de investimentos. Oferece uma vaga na universidade, mas nega um prato de comida e uma cama para o aluno pobre dormir”, lamenta. “Dessa forma, sabota o futuro daquele que vai construir o Brasil de amanhã”. 

Texto original: CARTA CAPITAL

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