por Sergio Tuthill Stanicia* — publicado 01/02/2018 18h15, última modificação 01/02/2018 13h10
Caso aprovada, a proposta da senadora Maria do Carmo Alves, do DEM, irá instituir critérios subjetivos de controle e abrir espaço para abusos de poder
O Senado pode legitimar o assédio moral no setor público |
Em sua redação original, a Constituição previa que os servidores públicos se tornassem estáveis após dois anos de exercício efetivo, podendo perder o cargo apenas em virtude de procedimento administrativo ou de sentença judicial transitada em julgado.
A Emenda Constitucional 19, de 1998, ampliou esse período para três anos e incluiu como hipótese de perda do cargo a reprovação em procedimento de avaliação periódica de desempenho, a ser disciplinado por lei complementar (art. 41 §1º III).
O projeto de lei complementar que regulamentaria esse dispositivo constitucional proposto em abril de 2017 pela senadora Maria do Carmo Alves (DEM-SE), não é, porém, adequado, pois deixa o servidor público à mercê de critérios de avaliação excessivamente subjetivos.
Ainda que o substitutivo proposto pelo senador Lasier Martins (PSD-RS) e aprovado em outubro pela Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania tenha corrigido alguns de seus problemas mais graves (a competência exclusiva do superior hierárquico para efetuar a avaliação e a possibilidade de “acordo” entre avaliador e avaliado), o texto aprovado preserva a principal deficiência do projeto original, a falta de objetividade nos critérios de avaliação.
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O projeto inicialmente apresentado deixava a avaliação de desempenho a cargo unicamente do superior hierárquico, o que poderia levar a situações de abuso ou constrangimento, por exemplo, em caso de inimizade pessoal ou até mesmo de ordens ilegais emitidas pela chefia que o servidor se sentiria compelido a cumprir.
Caso não concordasse com o resultado da avaliação, eram poucos os mecanismos de defesa previstos para o servidor. O primeiro deles era um “pedido de reconsideração” para o próprio avaliador, medida com grande possibilidade de ser inócua por ser apreciada pela mesma pessoa. O segundo era um recurso ao “órgão máximo de gestão de recursos humanos”.
O servidor também contaria com um formulário para “avaliação do avaliador”, com uma garantia formal de sigilo que na prática não ocorreria nos casos de superiores com poucos subordinados, pois seria fácil reconhecer e retaliar subordinados que manifestassem insatisfação.
O projeto original previa ainda a possibilidade de acordo entre avaliador e avaliado quanto ao planejamento das atividades a serem realizadas, que seria “flexível, permitindo repactuações ao longo do período avaliativo”, em dispositivo que lembra as ideias que pautaram a reforma trabalhista aprovada nos últimos meses.
Com o substitutivo aprovado pela CCJ, a previsão de acordo entre avaliador e avaliado foi suprimida. Obviamente não haveria paridade entre o avaliado e seu superior hierárquico para acordar livremente, o que se extrai da própria lei que dispõe sobre o regime jurídico dos servidores federais, segundo a qual é dever do servidor “cumprir as ordens superiores, exceto quando manifestamente ilegais” (art. 116 IV Lei 8.112/90).
Ironicamente, a justificativa para a supressão do acordo parece não ter sido o mero reconhecimento do dado real da ausência de paridade, o que não ocorreu no caso da reforma trabalhista, mas o receio de que o subordinado desobedecesse e se recusasse a executar as tarefas determinadas pela chefia. Consta do parecer do senador Martins que “atos negociais pressupõem a possibilidade de recusa de uma das partes”, o que não existiria “no caso da distribuição de tarefas ao servidor público".
De todo modo, o substitutivo eliminou uma das regras mais nocivas aos servidores, pois o projeto passou a prever que a avaliação não ficará mais a cargo da chefia imediata, mas de uma “comissão avaliadora”, isto é, um “colegiado composto pela chefia imediata do avaliado e mais dois servidores estáveis, um dos quais escolhido pelo órgão de recursos humanos da instituição e o outro determinado por sorteio dentre os servidores lotados na mesma unidade do avaliado” (art. 3º).
Contudo, o substitutivo não eliminou o ponto mais prejudicial que constava do projeto original: a subjetividade dos critérios de avaliação. A lei proposta faz uma primeira divisão entre fatores avaliativos fixos e fatores avaliativos variáveis.
Os fatores avaliativos fixos são a qualidade e a produtividade, e comporão, cada um, 25% da nota atribuída ao servidor. As definições de qualidade e produtividade não são tão problemáticas, pois até têm alguma objetividade. Na definição de qualidade, por exemplo, o projeto menciona a observância às normas e procedimentos da instituição. A definição de produtividade é mais subjetiva, pois utiliza palavras como “tempestividade”, “eficiência” e “eficácia”, mas isso também pode ser mitigado com regras específicas para cada cargo ou órgão.
Os fatores avaliativos variáveis serão cinco, escolhidos entre os elencados no projeto de lei e aprovados pela “autoridade máxima da instituição”. Cada critério comporá 10% da nota do servidor.
Os fatores avaliativos variáveis constam do art. 9º do projeto de lei: relacionamento funcional, foco no usuário/cidadão, inovação, capacidade de iniciativa, responsabilidade, solução de problemas, tomada de decisão, aplicação do conhecimento, compartilhamento do conhecimento, compromisso com objetivos institucionais, autodesenvolvimento e abertura a feedback.
A cada um desses critérios, o projeto de lei atribui definições retóricas vagas, que repetem o próprio nome dado ao fator avaliativo ou utilizam sinônimos desprovidos de significado.
Para dar alguns exemplos: “relacionamento funcional” significa que “o avaliado cria e mantém vínculos pessoais e funcionais cooperativos e construtivos”;
"Inovação” quer dizer que “o avaliado propõe ideias aplicáveis a situações de trabalho”;
“Solução de problemas” é definida como a proposta pelo avaliado de “soluções consistentes para os problemas enfrentados em situações de trabalho”;
“Aplicação do conhecimento” significa que “o avaliado aplica oportunamente o conhecimento adquirido para melhoria do desempenho pessoal e da equipe”;
“Compartilhamento de conhecimento” significa que “o avaliado compartilha conhecimentos que possam ser relevantes para o desenvolvimento de pessoas ou o aperfeiçoamento de atividades”;
“Abertura a feedback” é definida como a utilização pelo avaliado de “feedback recebido para aprimorar o próprio desenvolvimento pessoal e funcional”.
Como se pode ver, as definições beiram o ridículo: solução significa solução, compartilhamento significa compartilhamento, feedback significa feedback etc. É nos fatores avaliativos variáveis que reside o grande problema do projeto de lei em sua redação atual. Não se trata de ser contra a perda do cargo por mau desempenho, tampouco de ser contra a promulgação de lei complementar que defina o procedimento de avaliação periódica conforme determina a Constituição. Trata-se de ser contra o projeto de lei em sua redação atual.
Embora o substitutivo aprovado seja consideravelmente melhor que o projeto inicial (por eliminar a competência exclusiva do superior hierárquico para a avaliação e o “acordo” entre avaliador e avaliado), o texto atual ainda contraria o princípio da impessoalidade na administração pública ao vincular 50% da nota atribuída ao servidor a fatores avaliativos tão vagos e subjetivos que sua regulamentação se torna tarefa muito difícil ou praticamente impossível.
*Sergio Tuthill Stanicia é Doutor em Direito pela USP
Texto original: CARTA CAPITAL
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