sexta-feira, 4 de março de 2016

A micropolítica da Agricultura Urbana e as grandes transformações coletivas

A rápida urbanização pela qual passamos nos fez desaprender sobre os ciclos da natureza e enxergá-la como algo estranho ao nosso cotidiano.

Lya Porto, Gustavo Nagib, Giulia Giacchè - Membros do Grupo de Estudos em Agricultura Urbana (GEAU)


Vivemos uma era de transformação, onde podemos encontrar ações e visões completamente opostas em espaços comuns: competição e cooperação, criação de hortas comunitárias e demandas por mais concreto na cidade, meditações coletivas e aumento do consumo de antidepressivos, explosão da culinária natural e dos fast foods. Nosso velho sistema econômico está na UTI e levou junto com ele os recursos naturais de nosso planeta Terra. Mas, afinal, quais são as resistências para transformar os nossos modos de vida que não deram certo?

É interessante observar que as dinâmicas da micropolítica têm muito a nos dizer sobre as lógicas dos níveis meso e macro do nosso sistema econômico, político e social. Um exemplo são os conflitos que ocorreram no espaço É Hora da Horta, no bairro da Casa Verde (zona norte), na cidade de São Paulo – espaço de trabalho com o cultivo de alimentos orgânicos em um terreno da Eletropaulo desde agosto de 2014.

A horta é cuidada diariamente por três agricultores e há mais de 50 espécies comestíveis, entre frutas, legumes, verduras, ervas medicinais e Plantas Alimentícias Não Convencionais (PANC). Além do cuidado com o cultivo de alimentos, há uma fiscalização constante para que não haja água parada com o objetivo de evitar a proliferação do mosquito Aedes aegypti, transmissor da dengue, do zika e da chikungunya.

Frequentada por pessoas do bairro e de outras regiões de São Paulo, há sete casas ao redor da horta e as atividades de agricultura passaram a incomodar alguns vizinhos. No final do ano passado, alguns deles fizeram uma denúncia contra a horta alegando que há falta de limpeza e risco de proliferação do mosquito transmissor da dengue. A Subprefeitura da Casa Verde, por sua vez, traduziu essa denúncia em uma multa de R$ 15 mil e enviou um fiscal no local pedindo para que uma das agricultoras retirasse todas as PANC.

Tendo em vista o ocorrido, nos perguntamos: quais são os sentidos envolvidos na ideia de falta de limpeza e risco de contaminação de dengue para os vizinhos e para os fiscais e técnicos da subprefeitura? Espinafre silvestre, ora pro nobis, beldroega, batata doce, trapoeraba, rúcula silvestre, feijão orelha de frade, vinagreira, amaranthus, bertalha, salsinha silvestre. Todas essas espécies são plantas alimentícias que se desenvolvem espontaneamente e se estabelecem no imaginário de algumas pessoas como ideias relacionadas à sujeira e doença.

Curiosamente, o próprio município assegura (e deveria promover) a Agricultura Urbana e Periurbana Agroecológica, conforme estabelecido na Lei no 13.727/04, regulamentada por meio do Decreto 51.801/10. Com base nessas regulamentações é papel da prefeitura promover o cultivo da diversidade das espécies, considerando que os fundamentos das práticas agrícolas de base ecológica são, entre outras, a agrobiodiversidade.

Depois do ocorrido, ao acionar a Coordenadoria de Segurança Alimentar e Nutricional do município, a coordenação do programa entrou em contato com a subprefeitura para esclarecer que não havia irregularidade nas atividades da horta. Ainda assim, esse fato demonstra que há despreparo para lidar com o Programa de Agricultura Urbana e Periurbana (PROAURP) no nível local.

O que há de errado nisso?

Por que chegamos ao ponto de plantas alimentícias serem consideradas perigosas e daninhas? Qual seria o sentido envolvido entre os vizinhos que se satisfazem em fazer denúncias e buscar culpados? E fiscais do poder público que se sentem úteis em prescrever multas e punir cidadãos? Por que não conseguimos sedimentar transformações no nosso sistema político, social e econômico?

A rápida e excessiva urbanização pela qual passamos no Brasil, especialmente em São Paulo, nos fez desaprender sobre os ciclos da natureza e nos colocou em uma situação de estranhamento a ela, como se não fizéssemos mais parte de um sistema integrado. Passamos a ter certa aversão do contato direto com a terra e considerar este envolvimento sinônimo de sujeira e promotor de possíveis doenças. Além de ser uma visão equivocada, este comportamento pode impossibilitar o tratamento dos problemas urbanos com iniciativas mais criativas e menos dependentes de produtos industriais que comprometem em larga escala não só o meio ambiente, mas a saúde humana.

O desafio de controlar o mosquito Aedes aegypti está diretamente associado à nossa péssima relação com as águas urbanas. O aterramento de rios e córregos da cidade de São Paulo transformou-se em dutos subterrâneos coletores e transportadores de esgoto. Além da falta de saneamento básico, que tornou os principais rios metropolitanos absurdamente poluídos e contaminados – hoje, o Tietê, o Pinheiros e o Tamanduateí são rios “mortos” na cidade de São Paulo. Essas são as causas reais da insalubridade do meio urbano e da propagação de doenças em escala tão alarmante.

Há um distanciamento e rechaço das pessoas em relação à natureza e esse posicionamento é refletido e reforçado pelas ações públicas.

Sucessivas gestões governamentais de diversos níveis federativos continuam sendo permissivas para a não preservação de áreas verdes e de mananciais, como é o caso da liberação de construção no Parque dos Búfalos, localizado em área particular. Nesse caso, tanto o governo federal, quanto o estadual e o municipal flexibilizam essas construções através de ações conjuntas.

A Companhia Ambiental do Estado de São Paulo (CETESB), órgão estadual, concede licenciamento para construção nessa área de preservação e o município de São Paulo segue mantendo a lógica de leis antigas sob nova roupagem, restringindo construção em áreas de preservação apenas para propriedades públicas e não para propriedades particulares.

Assim, embora a atitude dos vizinhos denunciarem uma horta alegando que o plantio de alimentos significa falta de limpeza não pareça ter alguma relação com a diminuição dos espaços verdes da nossa cidade, há uma forte relação entre as mesmas. É o distanciamento cada vez maior das pessoas e da natureza que gera doença, depressão, falta de sentido na vida, competição e consumo como fuga de um grande vazio. O vazio do distanciamento da essência de cada um de nós que está assassinando os recursos naturais do nosso planeta.

Nesse contexto, as hortas comunitárias se apresentam como solução a nível micro para despertarem a consciência ambiental e resgatarem o contato das pessoas com a natureza, que pode ter efeitos progressivos. As hortas urbanas não apenas nos indicam outro caminho para melhor gerir e cuidar das nossas cidades de maneira mais participativa, democrática e ambientalmente sustentável, como nos ensinam a controlar doenças na vida cotidiana.

O cultivo consciente de PANC (verdadeiros “matos de comer”) e o manejo responsável da água, que vêm sendo realizado nas hortas comunitárias de São Paulo, são exemplos desta ampliação de consciência cidadã. Por meio de uma nova forma de se relacionar com as pessoas e com a natureza, podemos transformar nossos hábitos, nossas cidades e nosso planeta.

Texto original: CARTA MAIOR

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