Por Alexandre Pilati, no site Outras Palavras:
Não sem alguma facilidade, os setores conservadores que comandam a sociedade global, através de dolente mantra numerológico, vão conseguindo fazer colar nas cabeças dos setores médios brasileiros a ideia de que a crise econômica atual só se vencerá com uma bela e grande tesoura, que ataque os gastos “escabrosos” do governo federal.
Mais uma vez trata-se da boa e velha fabricação de consenso em torno de algo que, a partir de uma constatação real, sustenta-se quase que miticamente como única saída, cujo endereço de classe, entretanto, como bem sabemos, é bastante definido. É mirar e ver: nas últimas semanas, a fabricação de consenso em torno da tesoura como saída única e necessária para a crise econômica passa-se à fabricação de consentimento. “Nada de política; a pura matemática nos vai tirar do abismo.” Será?
Os que já estão lascados por uma crise que não foi por eles inventada, aderem paulatinamente ao consenso de que a saída única é o sacrifício “momentâneo” de algumas conquistas (elevação real do salário mínimo, ampliação do alcance de serviços públicos essenciais, participação maior no mercado de trabalho, superação da miséria, conquista da casa própria…). Depois consentirão que a tal tesoura, a inefável tesoura da cartilha neoliberal, brandida na terra da Casa Grande por um coroinha do Grande Capital, corte o que os “de baixo” têm “de sobra”.
Pagaremos mais impostos, teremos o acesso aos serviços públicos mais restringido, perderemos salário real etc. E consentiremos. Aderiremos à “ideologia da tesoura”, deixando de vê-la como a ideologia dos “de cima”, ou seja, dos que criam a crise e lucram com ela. Veremos a “ideologia da tesoura” como a mística saída, a racional saída, a matemática (i.e.: mística+racional) saída para a crise. Por aí penetra surdamente a lenga-lenga do Estado mínimo e do arrocho sobre os trabalhadores, de mãos dadas com o fantasma do desemprego e a assombração das perdas salariais, que podem ser momentâneas ou perenes, dependendo da contrição que empreguemos ao ajoelhar diante do Capital que nos quer esmagar; o Capital com seus donos, que podem esperar mais um pouquinho, dependendo de nosso bom comportamento, de nossos trejeitos de lacaios.
E nós nos iludimos, seduzidos pelos senhores respeitáveis de negro terno imoral, pelos moços de rostos inteligentes e profundamente estúpidos que aparecem no infernal noticiário da noite. A primeira coisa que a tesoura corta é nossa cabeça, nossa capacidade de pensar. O medo, fabricado pela fabricação de consenso, fabrica também o consentimento. E nós aceitamos. Aceitamos a “ideologia da tesoura” como nossa salvação, embora ela seja um prenúncio de nossa rendição a uma vida mais restrita materialmente.
Quero lembrar aqui, ainda que medianamente extenso, um belo parágrafo de Terry Eagleton sobre a ideologia [i]:
“A visão racionalista de ideologias como sistemas de crenças conscientes, bem articulados, é claramente inadequada: deixa escapar dimensões afetivas, inconscientes, míticas ou simbólicas da ideologia, a maneira como ela constitui as relações vividas, aparentemente espontâneas do sujeito com uma estrutura de poder e a provê a cor invisível da própria vida cotidiana. Mas se ideologia, nesse sentido, é discurso primariamente performativo, retórico, pseudoproposicional, isso não significa que seja desprovida de um importante conteúdo proposicional – ou que as proposições que faz, inclusive as morais e normativas, não possam ser avaliadas quanto a sua verdade ou falsidade. Muito do que as ideologias dizem é verdadeiro e seria ineficaz se não o fosse, mas as ideologias também têm suas proposições que são evidentemente falsas, e isso não tanto por causa de alguma qualidade inerentemente falsa mas por causa das distorções a que são submetidas nas suas tentativas de ratificar e legitimar sistemas políticos injustos, opressivos.”
Eagleton chama as ideologias, neste mesmo trabalho, de “crenças letais”. Esta é a condição da letal “ideologia da tesoura”. Vencer a crise, segundo esta ideologia, quer dizer aplicar um remédio neoliberal, ou seja, que não atingirá jamais as estruturas que causam a crise. Então, se é isto que propala a “ideologia da tesoura”, fica certo que ela é uma “crença letal”, uma crença que não dizimará os seus sacerdotes, mas fará ficar à míngua os seus crentes mais frágeis. Isto pois a “ideologia da tesoura” não irá considerar a taxação das grandes fortunas, o corte significativo dos juros, a cobrança impiedosa dos grandes sonegadores, a revisão da necessidade de se manterem tão altas reservas, os penduricalhos chiques da ostentação do poder, a auditoria a sério da dívida pública, entre tantas outras coisas.
Como se explicarão cortes em “despesas obrigatórias” como educação, saúde ou programas sociais? Como será possível politizar esse debate para evidenciar que, nos últimos anos, o que o povo quis com mais força foram mais direitos sociais, mais atuação do Estado na prestação de qualidade de serviços públicos? O povo, está claro, não quer menos Estado, ele que mais Estado e com mais eficiência.
Alguém, contudo, terá de pagar por isso. A luta política de hoje devia caminhar para que os que sempre levam a melhor paguem mais pela manutenção da melhoria de vida progressiva daqueles que têm menos. Isso não é uma utopia. É apenas a simples negação política, consciente, da “ideologia da tesoura”. É o desejo de que a Política protagonize o enredo da atual crise e que a economia sirva para preencher com mais vida a vida de quem mais necessita.
A economia é uma ciência cujos atores centrais são as gentes. Os números, portanto, devem estar a serviço das gentes. As gentes: essas estranhas massas moldadas a sonho, desejo, sorriso e lutas. Mas, no cenário em que vivemos, de iminente vitória cabal da “ideologia da tesoura”, tem nos esbofeteado duramente a sugestão de que muitas vidas se acinzentarão, para sustentar o fetichismo frio dos números. Os números: esses estranhos animais sem ânima, que dão sustentação performática aos golpes seguros e escorchantes da “ideologia da tesoura”.
Texto original: BLOG DO MIRO
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