Jacques Távora Alfonsin
No momento em que se redige este artigo, 13,00 horas do dia 25 de junho de 2015, a Brigada Militar do Estado do Rio Grande do Sul, cumprindo uma ordem judicial, concluiu o desapossamento de mais de uma centena de famílias pobres que haviam ocupado uma extensa área urbana ociosa, pretendendo lá garantir um teto por precário que fosse. Emblematicamente, apelidaram carinhosamente o espaço urbano conquistado como “Ocupação Jacobina”, homenagem à uma reconhecida heroína gaúcha também lutando por terra.
Embora isso venha se repetindo quase diariamente em todo o país, juízas/es têm preferido a ameaça da força pública, ou a sua utilização imediata, para expulsar famílias acampadas, sem-terra ou sem-teto, às orientações que os próprios Tribunais do país vêm adotando, no sentido de não se proceder assim.
Já existe orientação oficial de se esgotar todos os meios de negociação, nesse tipo de conflito social, capazes de impedir os muito frequentes maus efeitos de decisões judiciais que, exatamente pelo uso da força pública, provoquem tumulto, lesões corporais e até mortes.
O Superior Tribunal de Justiça pretende tomar conhecimento de ações judiciais como a de Sapiranga, com a Resolução n. 110/2010 do Conselho Nacional de Justiça, e o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, ainda na semana passada, por sua Corregedoria-Geral, publicou o Edital n. 044/2015-CGJ, pelo qual colocou em regime de exceção, durante 03 meses, desde 15 deste junho, mais de uma dezena de ações envolvendo conflitos fundiários em cartórios judiciais de Porto Alegre, já dotadas de ordens judiciais de desapossamento de famílias como essas de Sapiranga. Justamente para possibilitar em tal prazo toda a conciliação possível.
Sapiranga dispõe de um meio desse tipo, ao que se sabe funcionando há mais de um ano, mas sem feição jurisdicional, cujas atas, na hipótese de não haver acordo, nem registram, como ocorreu no caso, as opiniões das partes, suas alegações, ou as de suas/seus advogadas/os, tornando as mesmas sem qualquer força probatória futura.
A empresa autora da ação contrária às famílias ocupantes do imóvel manifestou ter sido vítima de esbulho possessório, fazendo prova apenas, a teor da sua petição inicial, de um contrato de promessa de compra e venda. Embora se saiba que nem o título de propriedade seja suficiente para comprovar exercício efetivo de posse, como dispõe expressamente o art. 923 do Código de Processo Civil, o despacho da juíza que recebeu o pedido possessório deferiu a reintegração de posse em favor da autora, depois que a tal mediação fracassou. O recurso de agravo interposto pelas famílias acampadas foi rejeitado e a ordem foi cumprida agora. Ao que se sabe, nem a Resolução do Conselho Nacional de Justiça, nem o exemplo da Corregedoria-Geral do Tribunal de Justiça do Estado gaúcho tiveram qualquer efeito.
A sumariedade e o reducionismo com que o Poder Judiciário, raras exceções a parte, vem tratando questões como essa, por mais que os fatos estejam apontando não ser pela força violenta o melhor caminho de solução, não têm desencorajado a sua trágica repetição.
Um famoso processualista italiano já falecido, Francesco Carnelutti, deixou para quem lida com as leis, o direito e a história futura de ambos, uma lição tão simples quanto reveladora de como o ordenamento jurídico e a sua interpretação, sempre presentes em conflitos sociais refletidos em ações como a de Sapiranga, não podem ser avaliados como simples deduções legais frias, ou eficazes garantias de justiça.
Dizia ele que o fenômeno jurídico pode ser comparado com uma árvore, bastando qualquer pessoa, mesmo não sendo iniciada em interpretar leis, jamais esquecer a força da imagem. A terra onde esta árvore está plantada é a economia, onde os bens, como se sabe em toda economia, devem ser justamente partilhados; o caule é a lei e os frutos, a justiça.
Se já era forte a imagem, mais poderosa ficou depois de Carnelutti esclarecer que a semente dessa árvore, para que seus frutos não resultassem amargos ou chochos, devesse ser moral.
Aí reside o maior problema presente em decisões judiciais como esta de Sapiranga. Sempre que se fala em direito humano fundamental, como é o da moradia, a interpretação e a aplicação da lei tem muita dificuldade de reconhecer o quanto de força ética se compreende na dignidade humana inerente a um direito dessa natureza.
Parece fora de dúvida o fato de que, além de o despacho que determinou o desapossamento das famílias nesse processo ter desconsiderado a inexistência de prova de posse anterior do imóvel em causa, efetivamente exercida por parte da autora da ação, não levou em conta também esse fundamento axiológico inerente a todo o direito humano fundamental.
Na conferência do Habitat II, levada a efeito pela ONU em 1996, em Istambul, por exemplo, os chamados “despejos forçados”, como o de agora neste município gaúcho, já receberam repúdio quase unânime, com uma justificativa acrescida à rejeição da violência: o de tais desapossamentos jamais se preocuparem com o destino posterior das famílias sem terra ou sem teto vítima deles. É como se o Poder Público, algum proprietário ou possuidor de latifúndio nada tivessem a ver, não só com o mau uso do espaço físico terra, como com o direito presente no interesse difuso de acesso à terra que qualquer pessoa tem, além do destino futuro da multidão desapossada.
Sabe-se lá onde vão parar as famílias pobres ou miseráveis que estão sendo agora expulsas dessa terra. Tanto a Administração Pública quanto o Judiciário parece estarem perfeitamente tranquilos com isso: cumpriram a lei, por mais imoral e injusta que tenha sido a sua decisão. As/Os pobres, entretanto, aprenderam mais uma lição da sua já desgraçada vida. Tomaram consciência de que, pela grande solidariedade política e jurídica recebida com o reconhecimento do seu direito, não estão sós e, na medida de sua organização e mobilização, a terra há de lhes abrir um espaço menos escravizado como esse e, de sua perseverança em conquistá-la, continuarão acampando para libertar-se e libertá-la.
Embora isso venha se repetindo quase diariamente em todo o país, juízas/es têm preferido a ameaça da força pública, ou a sua utilização imediata, para expulsar famílias acampadas, sem-terra ou sem-teto, às orientações que os próprios Tribunais do país vêm adotando, no sentido de não se proceder assim.
Já existe orientação oficial de se esgotar todos os meios de negociação, nesse tipo de conflito social, capazes de impedir os muito frequentes maus efeitos de decisões judiciais que, exatamente pelo uso da força pública, provoquem tumulto, lesões corporais e até mortes.
O Superior Tribunal de Justiça pretende tomar conhecimento de ações judiciais como a de Sapiranga, com a Resolução n. 110/2010 do Conselho Nacional de Justiça, e o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, ainda na semana passada, por sua Corregedoria-Geral, publicou o Edital n. 044/2015-CGJ, pelo qual colocou em regime de exceção, durante 03 meses, desde 15 deste junho, mais de uma dezena de ações envolvendo conflitos fundiários em cartórios judiciais de Porto Alegre, já dotadas de ordens judiciais de desapossamento de famílias como essas de Sapiranga. Justamente para possibilitar em tal prazo toda a conciliação possível.
Sapiranga dispõe de um meio desse tipo, ao que se sabe funcionando há mais de um ano, mas sem feição jurisdicional, cujas atas, na hipótese de não haver acordo, nem registram, como ocorreu no caso, as opiniões das partes, suas alegações, ou as de suas/seus advogadas/os, tornando as mesmas sem qualquer força probatória futura.
A empresa autora da ação contrária às famílias ocupantes do imóvel manifestou ter sido vítima de esbulho possessório, fazendo prova apenas, a teor da sua petição inicial, de um contrato de promessa de compra e venda. Embora se saiba que nem o título de propriedade seja suficiente para comprovar exercício efetivo de posse, como dispõe expressamente o art. 923 do Código de Processo Civil, o despacho da juíza que recebeu o pedido possessório deferiu a reintegração de posse em favor da autora, depois que a tal mediação fracassou. O recurso de agravo interposto pelas famílias acampadas foi rejeitado e a ordem foi cumprida agora. Ao que se sabe, nem a Resolução do Conselho Nacional de Justiça, nem o exemplo da Corregedoria-Geral do Tribunal de Justiça do Estado gaúcho tiveram qualquer efeito.
A sumariedade e o reducionismo com que o Poder Judiciário, raras exceções a parte, vem tratando questões como essa, por mais que os fatos estejam apontando não ser pela força violenta o melhor caminho de solução, não têm desencorajado a sua trágica repetição.
Um famoso processualista italiano já falecido, Francesco Carnelutti, deixou para quem lida com as leis, o direito e a história futura de ambos, uma lição tão simples quanto reveladora de como o ordenamento jurídico e a sua interpretação, sempre presentes em conflitos sociais refletidos em ações como a de Sapiranga, não podem ser avaliados como simples deduções legais frias, ou eficazes garantias de justiça.
Dizia ele que o fenômeno jurídico pode ser comparado com uma árvore, bastando qualquer pessoa, mesmo não sendo iniciada em interpretar leis, jamais esquecer a força da imagem. A terra onde esta árvore está plantada é a economia, onde os bens, como se sabe em toda economia, devem ser justamente partilhados; o caule é a lei e os frutos, a justiça.
Se já era forte a imagem, mais poderosa ficou depois de Carnelutti esclarecer que a semente dessa árvore, para que seus frutos não resultassem amargos ou chochos, devesse ser moral.
Aí reside o maior problema presente em decisões judiciais como esta de Sapiranga. Sempre que se fala em direito humano fundamental, como é o da moradia, a interpretação e a aplicação da lei tem muita dificuldade de reconhecer o quanto de força ética se compreende na dignidade humana inerente a um direito dessa natureza.
Parece fora de dúvida o fato de que, além de o despacho que determinou o desapossamento das famílias nesse processo ter desconsiderado a inexistência de prova de posse anterior do imóvel em causa, efetivamente exercida por parte da autora da ação, não levou em conta também esse fundamento axiológico inerente a todo o direito humano fundamental.
Na conferência do Habitat II, levada a efeito pela ONU em 1996, em Istambul, por exemplo, os chamados “despejos forçados”, como o de agora neste município gaúcho, já receberam repúdio quase unânime, com uma justificativa acrescida à rejeição da violência: o de tais desapossamentos jamais se preocuparem com o destino posterior das famílias sem terra ou sem teto vítima deles. É como se o Poder Público, algum proprietário ou possuidor de latifúndio nada tivessem a ver, não só com o mau uso do espaço físico terra, como com o direito presente no interesse difuso de acesso à terra que qualquer pessoa tem, além do destino futuro da multidão desapossada.
Sabe-se lá onde vão parar as famílias pobres ou miseráveis que estão sendo agora expulsas dessa terra. Tanto a Administração Pública quanto o Judiciário parece estarem perfeitamente tranquilos com isso: cumpriram a lei, por mais imoral e injusta que tenha sido a sua decisão. As/Os pobres, entretanto, aprenderam mais uma lição da sua já desgraçada vida. Tomaram consciência de que, pela grande solidariedade política e jurídica recebida com o reconhecimento do seu direito, não estão sós e, na medida de sua organização e mobilização, a terra há de lhes abrir um espaço menos escravizado como esse e, de sua perseverança em conquistá-la, continuarão acampando para libertar-se e libertá-la.
Texto original: CARTA MAIOR
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