quinta-feira, 5 de julho de 2012

O Brasil não deu certo?

Por: Dr. João Fabio Bertonha

Reflexões sobre o sucesso do fracasso

Nesses últimos tempos, parece que (e este “parece” é simplesmente sinal de otimismo por parte do autor) uma das últimas esperanças de boa parte dos brasileiros para dar um novo sentido à sua sociedade está se dissolvendo. E isso menos pelos escândalos de corrupção, caixa 2 e outros e mais por uma opção pelo conservadorismo e/ou falta de interesse ou capacidade para enfrentar, ainda que superficialmente, as mazelas mais graves da sociedade brasileira.

Isso tem levado muita gente a repetir uma das frases que mais sintetizam o que somos e pensamos da nossa própria sociedade, ou seja, “O Brasil não deu certo”. Muitas variantes dessa frase também circulam (como, por exemplo, “O Brasil é o país do futuro que nunca chega”), mas o seu significado central é claro: nós, brasileiros, queremos construir uma sociedade rica, justa e influente no mundo e não o conseguimos simplesmente por incompetência, corrupção e muitos outros possíveis motivos.

Longe de mim dizer que esse país não tem problemas sérios de corrupção, incompetência, descaso e outros. Também não seria justo esquecer os muitos milhões de brasileiros que efetivamente sonham com um país melhor. Mas meu ponto é outro: talvez devêssemos ver o Brasil (e, provavelmente, toda a América Latina) como um caso de projeto incrivelmente bem sucedido e não o contrário.

Note-se que não apresento essa tese como criação minha. Inúmeros historiadores e cientistas sociais (como Manolo Florentino, João Fragoso, Jorge Caldeira e outros) têm trabalhado esse tópico e é neles que me baseio (sem, evidentemente, concordar com tudo o que eles propõem) para a redação desse artigo.

O que quero deixar claro é que o momento atual é mais um daqueles em que imaginamos que o motorista está seguindo o caminho errado por desconhecer a estrada quando, na verdade, ele o faz simplesmente porque quer.

Desde a época da colonização portuguesa, realmente, as elites brasileiras (ou luso-brasileiras, como se queira) parecem ter elaborado um projeto muito claro do que deveria ser o Brasil. Seria uma terra, onde, a partir da exploração intensiva do trabalho dos pobres e dos recursos naturais e de uma relação patrimonialista com o Estado, seria possível reunir rapidamente grandes fortunas. Tais fortunas seriam então usadas para reafirmar a hierarquia social através da ostentação e do clientelismo.

Ao mesmo tempo, nesse projeto, o Estado seria montado e pensado não como fator de desenvolvimento ou estrutura de representação coletiva, mas simplesmente para manter os privilégios, o poder e a riqueza dos dominantes. Por fim, haveria um ideal aristocrático permeando a sociedade brasileira, pelo qual se busca sempre enriquecer não pelo trabalho, mas pelo rentismo (ou seja, lucro advindo de atividades não produtivas), e sempre se procurando manter a maior distância social possível entre ricos e pobres, não apenas como subproduto do modelo, mas como ideal deste. A partir daí, certas derivações óbvias – como a violência para manter a ordem social e a fratura entre uma elite pouco comprometida com a nação e a população em geral – também aparecem.

É claro que este é um quadro muito simplificado de uma realidade muito mais complexa. Também está claro como tentar manter o grosso das riquezas e poder para si é algo que qualquer elite pretende e quer, seja aonde for. O que espanta, no caso brasileiro, é como um projeto inacreditavelmente exclusivo e injusto tem conseguido se manter ao longo de tanto tempo. As elites brasileiras, aliás, parecem ser mestres na arte de compor, recompor e mudar tudo na aparência sem alterar nada.

Realmente, os anos, as décadas e os séculos se sucedem e a essência do país parece continuar. A mão-de-obra tem que ser explorada ao limite e isso se fez/faz com os escravos, os imigrantes e os mal pagos trabalhadores de hoje. A ostentação é chave e objetivo da acumulação do capital e isso se manifestava/manifesta na construção de uma imponente casa grande na fazenda, em viagens a Paris ou a Miami ou em compras na Daslu.

O meio ambiente tem que ser destruído para gerar riqueza rapidamente e isso aconteceu/acontece no Nordeste, na Serra do Mar e, agora, na Amazônia.

O Estado deve distribuir favores e isso ocorreu/ocorre na época colonial, na de Pedro II ou nos escândalos recentes da República. Passado e presente parecem se confundir em alguns momentos

Mas talvez nada espante mais do que a capacidade das elites brasileiras em eliminar quaisquer alternativas e/ou adaptá-las para que o projeto maior não seja alterado.Tentou-se, por exemplo, manter o país essencialmente agrário o quanto foi possível. Quando isso não foi mais factível e a modernidade capitalista chegou ao país, no século XX, este se tornou cada vez mais urbano e industrializado. Mas continuamos, até hoje, com os traços do projeto original mais do que presentes, o que se corporifica na exploração de trabalho escravo por empresas modernas, na distribuição de benefícios do Estado aos “amigos do Rei”, no uso deste para concentrar a renda, etc.

É por este motivo que as discussões sobre alguns tópicos, no Brasil, são aparentemente infindáveis e nunca chegam a lugar nenhum, como quando se debate a educação, mecanismos de distribuição de renda, projetos para viabilizar o crescimento econômico acelerado, etc. Discute-se muito, mas, como não se quer realmente mexer nas coisas, não se sai do lugar.

Realmente, acho que não há ninguém que não saiba e concorde que alguns dos problemas centrais do Brasil são a má distribuição de renda (com conseqüente falta de um mercado interno), a educação de má qualidade e a imensa incompetência e falta de critérios do Estado para seus investimentos e gastos, entre outros. Ë visível que só com a renda mais bem distribuída, educação de qualidade para todos e um Estado menos patrimonialista que poderemos avançar para uma situação de desenvolvimento em que não apenas as elites, mas todos os brasileiros sejam beneficiados. Ou será que os exemplos da Espanha, da Irlanda, do Chile, da Coréia do Sul e outros não podem nos ensinar nada?

O problema é que os que realmente mandam no país (e, na verdade, toda a população, que acaba por absorver e reproduzir esses ideais) não viam, e não vêem, porque avançar na direção dessas iniciativas. Para que, se, como as coisas estão, minha riqueza e poder continuam crescendo e tudo vai bem? Numa situação de desenvolvimento, as elites poderiam ficar ainda mais ricas, mas para que se preocupar em agir se elas já têm até mais do que conseguem gastar e as massas parecem quietinhas no seu lugar? Além disso, numa situação hipotética de desenvolvimento e democracia plenas, a pobreza e a desigualdade social diminuiriam e isto seria horrível. Afinal, ostentar a própria riqueza no meio da pobreza e deixar claro quem manda é um dos prazeres dos vencedores dentro do “sistema Brasil” e perder isso seria inaceitável.

Enfim, o projeto brasileiro se revelou suficientemente elástico para permitir ao país sair de uma realidade agrícola para uma urbana e industrial, mas sempre mantendo, em linhas gerais, os seus elementos chave. A questão que se coloca, nos últimos anos, é se é possível levar o país ao mundo moderno, do consumo de massa, da democracia e da sociedade tecnológica sem romper radicalmente com ele. Creio que não. Portanto, o problema agora é sair de vez do modelo e não, como sempre tem sido feito, adaptá-lo às novas circunstâncias que vão surgindo.

Espero que tenha ficado claro, ao fim do artigo, como não acredito que a história brasileira seja totalmente homogênea e imutável desde 1500 até hoje, como se o imponderável e as alterações estruturais não pesassem. O Brasil de hoje não é o de 1930 ou de 1780 e não ver as mudanças seria um crime capital para um historiador. Cumpre ressaltar igualmente como, no decorrer da história, muitos grupos (imigrantes, escravos, empresários) conseguiram resistir ao que a sociedade impunha e defender ao menos em parte os seus interesses. Se não fosse assim, os descendentes de italianos ainda estariam nas fazendas, os negros nas senzalas e haveria aristocratas no poder, o que, felizmente, não é o caso.

O que quero deixar claro é que está mais do que na hora de darmos nomes aos bois e entender que este não é um país que tentou com vontade e determinação o desenvolvimento e falhou. É um que tenta o desenvolvimento, mas desde que não fuja do seu projeto original, o que, no mundo contemporâneo, é sinônimo de fracasso.

Resta esperar que, em algum momento, a pressão interna ou externa seja tão forte que inste nossas elites e nossa população a mudar. O como, o quando e o se isso vai acontecer, é algo que não sei. A única coisa que tenho certeza é que o “projeto Brasil” é inviável para o futuro. Ou rompemos com ele, ou estamos permanentemente condenados a sermos um país, parafraseando Darcy Ribeiro, que não dá certo porque dá certo demais para as suas elites. 
 
Editado por: Filipe de Sousa

Publicado na Gazeta Valeparaibana de Julho 2012-07-01
http://www.gazetavaleparaibana.com/056.pdf

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